Mulheres no Dia do Pastor de Renas, em Salekhard
Maksim Blinov/SputnikKatia Gotovtseva nasceu e foi criada na vila de Digdal, a 125 quilômetros do centro regional mais próximo da República da Iakútia. O exame estatal de línguas estrangeiras só pode ser realizado nesses centros urbanos. Com a chegada da primavera, e as inundações decorrentes, as estradas ficam destruídas.
Mas isso não impediu Katia, que, junto com seu pai, traçasse seu próprio caminho – literalmente. A aluna do último ano do ensino médio iria a cavalo da aldeia vizinha para Digdal, depois seguiria para outra de trator, antes de pegar o carro. “Mal tínhamos saído da aldeia quando meu [cavalo] Orlik sentiu algo e ficou realmente assustado. Ele começou a correr para a floresta, ergueu-se com as patas traseiras e tentou me expulsar várias vezes. Então ele simplesmente se jogou na floresta densa com seus galhos e arbustos secos. Eu só tive tempo de lançar um olhar para o meu pai, esperando que ele me salvasse do cavalo enlouquecido. Mas papai ficou parado e silenciosamente em pânico, porque interferir só pioraria as coisas”, lembra.
O rosto de Katia ficou arranhado, seu boné de beisebol rosa saindo voando, e seu nariz estava sangrando. Mas ela agarrou as rédeas com força e, depois de um tempo, o cavalo se acalmou. As sete horas seguintes correram sem incidentes.
Um trator com carruagem já esperava por eles no início do trecho seguinte, onde Katia se encontrou com outros estudantes também a caminho do exame. “Viajamos novamente por cerca de sete horas. Estava muito escuro e frio, tentamos dormir um pouco, mas sem muito sucesso”, conta. Pernoitou no povoado seguinte, antes de entrar no carro que finalmente a levaria ao exame. “Os professores, chocados, estavam ansiosos para ouvir minha história enquanto eu me sentava, constrangida, em frente a um prato de purê de batata e almôndegas”, lembra Katia.
Abasteça uma vez por ano e evite ser comido
Os 690 habitantes de Dikson, a aldeia mais setentrional da Rússia, vivem no frio quase o ano inteiro. Mesmo durante o verão, a temperatura sobe para uma média de apenas 5,5℃(com invernos caindo para até -48℃). Para se locomover, é preciso uma motoneves durante quase o tempo todo. E este está longe de ser o único revés.
Dikson
Robert Prascenis/SputnikO povoado, apelidado de “Capital do Ártico” em homenagem a uma canção popular da época soviética feita pelos moradores locais, é tão isolado do resto da Rússia que só é possível obter combustível uma vez por ano, durante o período de navegação. A entrega é feita por navio. Não há posto de gasolina e o mais próximo fica a 500 quilômetros de distância – mas também não dá para alcançá-lo, pois não há estradas. “Carros particulares são uma grande raridade aqui. As pessoas costumam andar de motoneves e lanchas. Durante a [temporada de] navegação, pedimos cerca de uma ou duas toneladas de combustível. Isso é suficiente para um ano”, diz o morador local Aleksandr Anisimov.
É a mesma coisa com a conexão à internet – bastante fraca em Dikson. Ninguém nunca tentou assistir a um vídeo, e leva até duas horas para carregar e ver fotos.
A aldeia está sob constante ameaça de animais selvagens. O papel de guardas florestais recai sobre a polícia local, já que simplesmente não há crime em Dikson. “Temos lobos e ursos aqui. Eles podem surgir inesperadamente de trás das casas ou sair delas”, diz Mikhaíl Degtiarev. Há avisos por toda a cidade para não alimentar os ursos e jamais tentar tirar fotos com eles.
Mikhaíl Degtiarev
Siberia. Realities / youtube.comTelefone no telhado
Kusur é a aldeia mais difícil de chegar no Daguestão. Está localizada ano alto das montanhas e só tem uma estrada que leva até ela. Para chegar lá, é preciso dirigir sete horas da capital Makhatchkalá. Perto da aldeia de Mukhakh, na base da Cordilheira do Cáucaso, a estrada simplesmente acaba. O que se segue é um perigoso caminho de montanha. A viagem para Kusur é de mais 15 quilômetros.
No verão, cerca de sete ou oito casas da aldeia são habitadas. No inverno, quem consegue migrar, o faz. Mas é preciso enfrentar 20 quilômetros de rio congelado em esquis apenas para chegar à vila vizinha de Djinikh.
A única mordomia civilizacional ‘moderna’ da vila é uma cabine de telefone público. E tem um porém: não se pode usá-lo para ligar, somente para receber ligações. O primeiro morador que ouvir o toque atende e sai em busca da pessoa solicitada do outro lado da linha. Há telefones celulares na vila, mas a cobertura é limitada a praticamente o raio de uma casa, perto do cume, e apenas do lado que dá para a torre da rede móvel. O celular está preso à parede por uma placa metálica improvisada e fixada no local exato onde o sinal é mais forte. A pessoa que estiver usando deve discar o número com cuidado, sem tirar o telefone da estrutura. Durante o dia, é comum ver uma fila de pessoas ali no banco, esperando sua vez para usar o celular.
Internet no mato e drones pastores
Desde o início da pandemia do novo coronavírus, a vida em determinadas regiões remotas da Rússia se assemelha a uma missão de jogo. Por um lado, os moradores dessas áreas podem entender a importância de se isolarem; de outro, as crianças dessas regiões passaram a detestar o ensino à distância. Se, para grande parte da Rússia, quarentena significa ficar confortável com uma caneca de chá e moletom ao lado do computador, para essas crianças, é algo um pouco mais extraordinário.
Os alunos da vila de Prikamie, a 1.200 km de Moscou, por exemplo, precisam se sentar no telhado por horas para se manterem conectadas à internet. “Subo no telhado para mandar minha lição de casa e baixar arquivos. Fico lá por uma hora. Se você fizer uma pausa, terá que começar a baixar tudo de novo”, diz Amina Kazarinova.
No vilarejo bachquírio de Kulmetievo, os estudantes só conseguem acesso à internet em um caminho no meio de um campo. Para isso, segundo os moradores, é preciso pegar o carro. “Um carro pode levar quatro alunos, todos fazendo lição de casa, alguns no telefone, outros usando um laptop”, dizem os locais.
Em compensação, aqueles que seguem um estilo de vida nômade e viajam toda a vida por terrenos selvagens – estamos falando aqui de pastores de veados da República da Iakútia – têm adquirido experiências novas e tecnológicas.
Hoje em dia, seus cervos são vigiados por esquadrões de drones. “É muito mais fácil encontrar um que está faltando desta forma. Usamos o quadricóptero em locais onde a floresta fica mais densa. Os cervos só ficam com medo quando ele voa rápido – o som realmente os incomoda. Quando ele paira no ar, fica tudo bem”, diz o pastor Serguêi Laptander.
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