Propaganda antiaborto ganha força na Rússia. Mas será que as mulheres concordam?

Estilo de vida
VICTÓRIA RIABIKOVA
Enquanto médicos russos ganham bônus por persuadir as mulheres a não fazerem um aborto, ativistas autointitulados pró-vida defendem o parto independentemente das circunstâncias ou da idade, incluindo menores. Algumas mulheres que planejam fazer aborto são até mesmo obrigadas a consultar um padre.

Grávida de cinco semanas, a dona de casa Vera, de Moscou, soube que seu marido havia sido despedido em março de 2020, no início do lockdown. Juntos, eles tentaram encontrar outro emprego, mas as empresas estavam realizando entrevistas somente após a quarentena. Percebendo que mal haviam dinheiro para se alimentar, muito menos para sustentar uma terceira boca, Vera e o marido tomaram a decisão – para eles, “difícil” – de fazer um aborto. No entanto, o pedido foi negado.

“O médico me disse que meu seguro médico obrigatório [gratuito para todos os russos] pode não cobrir o aborto e, em qualquer caso, todas as cirurgias não emergenciais haviam sido adiadas. Ele disse que eu poderia tentar argumentar e recorrer, mas, até lá, seria tarde demais. Considerando o tom de voz, percebi que não era a única nessa posição”, disse Vera em entrevista ao Coda.

No fim das contas, Vera optou por pagar por um aborto em uma clínica particular – o que significava, além da frustração, acumular dívidas no cartão de crédito. 

Vera não foi, de fato, a única mulher a ter um aborto negado durante a pandemia. Alguns hospitais passaram a negar a realização de abortos gratuitos em Moscou e outras regiões da Rússia para liberar espaço para pacientes com coronavírus.

No entanto, mesmo em tempos “normais”, Vera poderia ter tido o pedido recusado. Com o colapso da taxa de natalidade na Rússia desde 1990, os ginecologistas costumam dissuadir os pacientes de fazerem um aborto; às vezes, as mulheres são até obrigadas a receber a bênção de um padre.

Entre o direito e a culpa

De acordo com as estatísticas oficiais mais recentes, em 2018 houve 661 mil abortos na Rússia, contra 1,6 milhão de nascimentos. Rosstat, o serviço federal de estatísticas, cita como principais razões para o aborto a falta de confiança no parceiro, dificuldades de moradia, baixa renda e ausência de educação sexual entre os jovens. Segundo o portal médico NeBoleem, 40% dos abortos são feitos a pedido da mulher, 25% por riscos à saúde materna, 23% por problemas sociais e os 12% restantes por anomalias fetais. “Paralelamente, o número de abortos na Rússia está diminuindo ano a ano: de 1993 a 2018, caiu oito vezes”, disse Vladimir Serov, presidente da Sociedade Russa de Obstetras e Ginecologistas, ao jornal Izvêstia em janeiro de 2018.

Qualquer mulher na Rússia tem o direito de interromper a gravidez gratuitamente antes de 12 semanas (22, no caso de estupro), e a qualquer momento se houver um motivo médico urgente. As mulheres não podem, entretanto, fazer o aborto no mesmo dia da consulta; de acordo com a lei, o médico deve dar tempo à gestante para considerar sua decisão. O chamado “período de reflexão” vai de 2 a 7 dias.

Adiar as operações não é a única medida que os médicos tomam para evitar abortos. Também devem mostrar à mulher uma ultrassonografia do embrião, incluindo os batimentos cardíacos. Como incentivo, os profissionais que convencer uma mulher de desistir do aborto podem participar da competição “Santidade da Maternidade” com a chance de receber de 60.000 a 100.000 rublos (4.195 a 7.000 reais) em dinheiro.

“Eu acredito piamente em natalidade. As mulheres foram criadas para dar à luz. É o nosso trabalho dissuadi-las do aborto. Eu mesmo já trabalhei em muitas escolas e acredito que as crianças devem ser ensinadas sobre esse assunto aos dez anos”, diz a obstetra e ginecologista Elena Ermakova, beneficiária do bônus anteriormente mencionado, em entrevista ao Snob. Ermakova afirma “sempre dar tempo à mulher para pensar” e aconselha o que fazer se, por exemplo, não faltar dinheiro ou apoio.

Às vezes, métodos mais cruéis são empregados para desencorajar as que buscam o aborto. Em conversa com o Afisha Daily, várias mulheres contaram como foram insultadas e levadas a se sentir culpadas por médicos, cujos consultórios costumavam ter cartazes com os dizeres “Uma mulher de verdade deve dar à luz” nas paredes.

Quando tinha 18 anos, Tatiana, da cidade de Zavoljie (438 km de Moscou) não desejava dar à luz um filho de um homem que a estuprou no banheiro de uma boate, mas durante a consulta lhe disseram que “uma menina com cabeça suficiente para fazer sexo por aí tem cabeça suficiente para serem educada”, disse Tatiana ao Afisha Daily, em 2019. O médico sugeriu fazer um aborto sem anestesia, alegando que “a dor a forçará a pensar duas vezes no futuro sobre abrir as pernas em qualquer oportunidade”. Tatiana pagou pelo procedimento em uma clínica particular e por muito tempo se censurou. Mais tarde casou-se, e agora se diz pronta para gravidez.

Igreja para aprovação

Mãe de dois filhos, Maria, da cidade de Stari Oskol, na região de Belgorod (630 km de Moscou), decidiu não prosseguir com a terceira gravidez, em 2018. Depois de dois partos difíceis, ela temia por sua saúde. O médico da clínica pré-natal, após tentar dissuadi-la, deu a Maria um documento para assinar reconhecendo que “o aborto em qualquer fase da gravidez é assassinato”. Em seguida, entregou uma lista de consultas necessárias antes que o aborto fosse sancionado. Uma delas era com um padre.

“Fiquei tão chocada que simplesmente fui embora. Que absurdo. Por que preciso da permissão de um representante da Igreja? O que isso tem a ver com a minha gravidez?”, lembra Maria, em uma entrevista ao Lenta.ru. Ela então criou uma comunidade na rede social Vkontakte e descobriu que a prática já existia desde pelo menos 2009, e que os padres tinham o hábito de negar o aborto às mulheres. Como resultado, algumas recorreram à rede privada; outras, acabaram mantendo a gravidez.

A Igreja Ortodoxa Russa alega que as conversas com os padres são voluntárias e podem até ser incluídas no prontuário médico; segundo membros, isso ajuda a “salvar vidas de crianças”. Além disso, o chefe da Igreja, o Patriarca Kirill, pediu duas vezes às autoridades russas que tornassem o aborto disponível apenas em clínicas privadas, bem como proibissem toda a publicidade e propaganda do aborto.

A Igreja também vem lutando para que o direito à vida desde o momento da concepção seja consagrado na lei. “O aborto é a destruição injustificada da vida de um ser humano, ou seja, o assassinato. Portanto, não se pode falar de ‘direito ao aborto’, uma vez que isso significa o direito de matar. O aborto não pode ser reconhecido como método de planejamento familiar”, lê-se no texto da proposta da Igreja Ortodoxa Russa publicado em seu site em 2019.

Movimentos contra o aborto

“Não gosta de crianças? Então durma sozinha!”, “Preserve a vida dentro de você” e “Um quinto filho não é uma quinta roda” são somente alguns dos slogans usados ​​por grupos pró-vida que procuram convencer as mulheres a desistir de um aborto.

Os membros de tais movimentos se opõem não apenas ao procedimento, mas também aos anticoncepcionais hormonais – em sua opinião, tais drogas interrompem a vida do embrião, “que é assassinato da mesma forma, apenas não no nome”.

Uma das maiores comunidades pró-vida, existente desde 2015, conseguiu coletar mais de um milhão de assinaturas para a proibição do aborto. O movimento Za Jizn (Pela Vida) realiza atividades em 86 cidades da Rússia. Além de consultas, seus ativistas ajudam a colocar as gestantes em contato com advogados, assistentes sociais e psicólogos, e fornecem ajuda financeira.

Durante as consultas, os voluntários utilizam modelos de embriões – bonecos especiais com “pele” semelhante à de uma criança de verdade. Antes de um aborto, a mulher é solicitada a segurar a boneca para que ela entenda que “por trás de termos médicos frios como óvulo fetal e embrião há crianças de verdade”, explicam os ativistas. Segundo os fundadores do movimento, cerca de 15% das mulheres que ali se consultam decidem não fazer o aborto, contra 10 a 12% em outros lugares.

A conta da comunidade no Instagram publica histórias positivas sobre o parto, incluindo mães de 14 anos, casos de parto bem-sucedido durante coma e relatórios sugerindo que mães de vários filhos têm menos probabilidade de ter câncer.

Natália Moskvitina, fundadora de um movimento semelhante chamado “Jenschini za Jizn” (Mulheres pela Vida), disse, em uma entrevista ao Wonderzine, que a contracepção acessível corrompe os jovens e leva a mais gravidezes e abortos. Na mesma entrevista, Moskvitina afirmou que até menores devem dar à luz.

“Gravidez de menores não é um tema digno de debate. Se você, como mãe e pai, falhou em criar seu filho adequadamente e de repente teve que se tornar avó ou avô, que assim seja”, defendeu Moskvitina.

A moscovita Maria Abga, de 42 anos, descreve todos esses movimentos como fraudulentos. Em julho passado, Abga escreveu a diversos deles em busca de ajuda para lidar com uma gravidez não planejada. Apenas Moskvitina respondeu – e simplesmente enviou um link com erro para um site sobre os perigos do aborto.

“E, então, ela imediatamente se esqueceu de mim. Por quê? Porque tenho 42 anos e em minha página está escrito que fiz tratamento de câncer. Os movimentos pró-vida não precisam de pessoas como eu, mesmo se pagarmos. Precisam de garotas estúpidas para fazer reportagens sensacionalistas na TV. Assim arrecadam mais grana”, diz. 

Cada caso é um caso

Nos últimos 20 anos, o número de russos que se opõem ao aborto triplicou, segundo uma pesquisa de 2018 do instituto independente Centro Levada. A proporção de pessoas que consideram o aborto inaceitável é de 35%, contra apenas 12% em 1998.

A comissária dos direitos da criança na Rússia, Anna Kuznetsova, é outra defensora da proibição do aborto. Em maio passado, Kuznetsova sugeriu cortar o financiamento para clínicas de aborto e restringir a venda de drogas abortivas em farmácias.

A iniciativa foi contestada por Irina Kirkova, vice-presidente do Conselho Presidencial para Sociedade Civil e Direitos Humanos, que afirmou que “as mulheres devem poder receber cuidados médicos fornecidos pela lei para prevenir a gravidez”.

Nem mesmo a posição da Igreja Ortodoxa Russa sobre o aborto é tão inflexível. “Nos casos em que haja ameaça direta à vida da mãe durante a gravidez, sobretudo se ela tiver outros filhos, recomenda-se a indulgência”, lê-se no documento “Bases do Conceito Social da Igreja Ortodoxa Russa”, adotado em 2000. O próprio Patriarca Kirill admite a possibilidade se a mãe tiver que escolher a própria vida e a do filho.

“A decisão, claro, é da mãe. Mas a Igreja diz que sua vida deve ter prioridade. Nesse caso, ela é absolvida do pecado porque suas ações são ditadas pelas circunstâncias.”

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