Afinal, quem (ou o quê) é a intelligensia russa?

O escritor e médico Antôn Tchékhov.

O escritor e médico Antôn Tchékhov.

TASS
Termo foi tão difundido mundo afora que já é dicionarizado em português e inglês – mesmo que ninguém saiba o que é! Originalmente uma palavra emprestada do Ocidente, "intelligensia" adquiriu um significado muito específico na Rússia, onde as pessoas ainda discutem seu significado - e a necessidade de tal camada da sociedade.

Tudo é complicado quando o assunto é a palavra "intelligensia" (que se pronuncia “intelliguêntsia"). Embora tenha suas origens no latim, a palavra só ganhou fama mundial graças à língua russa. O termo se refere a todos os tipos de pessoas instruídas, mas hoje é usado para descrever os campeões messiânicos e morais.

Enquanto muitos louvam a intelligensia como a “consciência da sociedade”, outros a desprezam como uma camada desligada da realidade e outros ainda, como Vladímir Lênin, chamam-nos de simples “bost*s”. Sério. Uma palavra, uma camada da sociedade e todo esse alarido. Por quê?

De anjos a reles mortais

O pedante cirurgião Filipp Preobrajênski (esq.), que transforma um cão em homem (dir.), é o típico membro da intelligentsia. Cena do filme

Na Rússia, quando alguém diz a palavra "intelligentsia", é provável que se imagine o seguinte: uma pessoa de boa aparência da classe média, talvez formada em ciências humanas, especuladora de assuntos mundiais, política e, é claro, do futuro e do destino da Rússia. Na Idade Média, porém, a intelligentsia tinha um significado completamente diferente.

A palavra latina "intelligentsia" podia significar "compreensão" ou "capacidade de entender", ou ainda "noção, conceito, ideia", e era usada tanto no singular quanto no plural. Segundo escreveu São Tomás de Aquino no século 13, “em várias obras traduzidas do árabe, os seres que chamamos de anjos são considerados intelligentsias, talvez por serem bons em pensar”.

Assim, a intelligensia já foi considerada como angelical. Hoje, porém, eles são predominantemente reles mortais.

Não só intelectuais

No início, "intelligentsia" significava a capacidade de pensar e raciocinar. Mas, no século 19, depois de tomarem a palavra emprestada do alemão, os russos passaram a aplicá-la àqueles que tinham tal habilidade, ou seja, pessoas instruídas.

É difícil precisar o momento exato em que o termo mudou de significado, mas os historiadores acreditam que Vassíli Jukóvski, o principal poeta russo do início do século 19, tenha sido o primeiro a usar o novo significado, ou, pelo menos, a fazê-lo por escrito.

Vassíli Jukóvski, o primeiro a utilizar o termo

O sociólogo Lev Gudkov cita um trecho do diário de Jukóvski: “A melhor parte de nossa nobreza de São Petersburgo [é] a intelligentsia com educação e modo de pensar europeus”. Assim, comenta Gudkov “ele une três componentes nesta palavra: uma orientação pró-europeia, uma boa educação e um desejo de iluminar as pessoas”.

Cavaleiros de armadura brilhante?

A intelligentsia típica do Império russo: grupo literário

Piotr Boboríkin, um jornalista e escritor russo que, acredita-se, foi quem popularizou o termo intelligensia, listou as características vitais deste estrato social em seu romance “Kitái-Górod”. Segundo ele, um membro da intelligensia prefere a perfeição ética às posses do mundo, pensa no futuro e no progresso e se aperfeiçoa constantemente.

“No final do romance, Boboríkin sugere que a Rússia e seu povo são uma nova religião para a intelligentsia", diz o historiador Serguêi Motin.

De lá para cá, o contexto permaneceu o mesmo: a intelligensia russa está ligada a altos padrões éticos e superioridade moral, e não apenas a ter uma boa educação e ser um trabalhador intelectual.

“Há intelectuais no Ocidente, mas só nós temos a intelligentsia”, lê-se em um artigo no jornal russo Komsomólskaia Právda que define o termo.

Necessária ou inútil?

Aleksandr Radischev, membro absoluto da inteligentsia russa.

Inventado originalmente para descrever livres-pensadores, tanto da elite intelectual quanto da moral, o termo intelligensia, no Império Russo, estava profundamente associado à parte pró-Ocidente e liberal da sociedade educada, que frequentemente se opunha aos tsares e ao governo.

Por exemplo, Aleksandr Radischev, autor e crítico social que escreveu “Putechestvie iz Peterburga v Moskvu” (em tradução livre, “Viagem de São Petersburgo a Moscou”), criticava o sistema político e social sob o governo de Catarina a Grande, e acabou punido e exilado por isso. Ele era um membro clássico dos círculos da intelligensia.

Não é de surpreender que muitos russos pró-governo, entre eles intelectuais patrióticos, rotulassem a “intelligensia” (geralmente colocada entre aspas para imprimir um tom de gozação e diminuir seu respeito) como cidadãos russófobos, ou apenas "coitadistas" sem sentido.

"Há gente que adora se autointitular 'intelligentsia'... que não gosta de uma mente forte ou de uma lógica saudável... Esses membros da 'intelligentsia' tentam proclamar sua emancipação e independência repreendendo a Rússia", afirmou Ivan Aksakov, um intelectual patriota. em 1868.

Com seus valores pró-europeus, a intelligentsia russa era algo muito próximo daqueles que hoje são ironicamente chamados de "flocos de neve" ou "liberais de coração sangrando". Despertando suspeitas na época dos tsares, a intelligentsia também não teve muito sucesso sob o regime soviético.

Lênin, por exemplo, ficou aborrecido com os membros da intelligentsia que permaneceram “lacaios do capital” (por não apoiarem sua revolução). Enfurecido, ele escreveu em uma carta a Maksím Górki: “Eles acham que são o cérebro da nação. Na verdade, eles não são os cérebros, mas as bost*s”.

Isso, porém, não significa que ele odiasse toda a intelligentsia – a intelligensia esquerdista era sempre bem-vinda.

Ironia e modéstia

Com o passar do tempo, cada vez mais pessoas passaram a usar o termo “intelligentsia” com conotações irônicas, retratando-a como pessoas ocupadas demais pensando em problemas morais para fazer algo realmente prático e útil.

“Ele nunca trabalhou em lugar algum. Trabalhar interferiria em seu pensamento sobre a missão da intelligentsia russa... e ele se considerava parte dela”, escrevem Iliá Ilf e Evguêni Petróv,  zombando desse estrato da sociedade, em seu romance satírico “Zolotôi teliônok” (em tradução livre, “O bezerrinho de ouro”).

Ao mesmo tempo, algumas pessoas consideradas parte da intelligentsia influenciaram a sociedade e tentaram melhorar o mundo - por exemplo, o médico soviético Andrêi Sákharov, que defendeu os direitos humanos na URSS e sofreu a opressão do Estado. Ele ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1975.

Andrêi Sákharov, humanista, intelectual e membro da intelligentsia russa.

Na atualidade, existe um termo mais comum que nada tem a ver com política ou com o papel social da intelligentsia, que é intelliguêntni, um adjetivo que significa “educado e bem-comportado”.

Este termo pode ser aplicado a qualquer pessoa que você respeite e cujo comportamento considere modelo para a sociedade. Mas as pessoas intelliguêntni nunca dizem sê-lo. Talvez por isso seja tão difícil definir quem é a intelligentsia russa hoje.

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