“A dor escorre da tela como uma lava radioativa que queima o chão. Estamos tão acostumados a zombar de como os filmes norte-americanos retratam os russos que não pescamos o momento em que eles passaram a discernir o que nós mesmos não podemos mais”, escreve a dramaturga Nina Belenitskaia sobre a nova série da HBO, “Chernobyl”, em sua página do Facebook.
Ela observa que os filmes caíram nas graças dos telespectadores russos (por vezes, por meio da pirataria), que certamente assistirão - mesmo que ilegalmente. Mas o que Belenitskaia quer mesmo saber é como pessoas abastadas em países ricos entendem a série.
Nina tinha quatro anos em 1986, quando ocorreu o acidente na usina nuclear de Tchernóbil (apesar de a série ser intitulada “Chernobyl”, sua grafia transliterada em português, mais próxima da pronúncia correta, é esta). “Diziam que a chuva é que era radioativa. Diziam que a gente não devia ir para debaixo da chuva, porque ela era corrosiva. Uma nuvem atômica provocada pela usina era algo que estava fora de questão”, diz.
Vimos tudo se desenrolar à medida em que acontecia
O avô do moscovita Andrêi era mineiro em Tula, cidade ao sul de Moscou, e já estava aposentado quando o acidente aconteceu - portanto, não estava no local da tragédia. Mas seus parentes recebendo ainda hoje auxílios sociais, já que a nuvem de radiação se espalhou até Tula.
“Eu sabia do acidente, claro. Mas, para mim, Tchernóbil não representava nenhuma emoção específica. Depois de assistir três episódios seguidos, eu passei a não dormir bem, ter pesadelos. Eu me sentia tão triste por todas aquelas pessoas e cachorros...”, diz Andrêi.
Muitos lamentam, porém, que uma série tão contundente não tenha sido filmada na Rússia. “Nas três décadas que decorreram após a tragédia, ninguém em território pós-soviético colocou nas telas os eventos da maneira adequada. Assim como ocorreu com a tragédia do submarino K-19 ou a corrida espacial entre a URSS e os Estados Unidos, o mundo passou a conhecer mais de perto este marcos da história russa a partir de filmes em língua inglesa”, diz o jornalista Iliá.
Na verdade, uma série russa chamada “Tchernóbil” estreou em 2014 na TV local. No entanto, ela tratava de misticismos envolvendo adolescentes que visitavam o local nos dias atuais, não dando pistas sobre o desastre.
É claro que nem todo mundo ficou satisfeito com todo o furor da imprensa e dos telespectadores em torno da nova série. A russa Marússia Tchurai, por exemplo, é cética quanto à produção norte-americana. Ela explica que já havia lido relatos de testemunhas do acidente, assistido a documentários e visitado a Tchernóbil há três anos. “A série da HBO é uma bela ficção, só isso. Chega de exagerar em torno dela!”, escreveu no Facebook.
Mas quem que não tinha interesse anteriormente pelo assunto, em geral, se sentiu profundamente afetado.
‘Ficamos surpresos com a verossimilhança’
“Meu pai era seguidor da ideologia soviética e piloto militar. Lembro que ele tinha até uma edição do Dicionário Ateísta na estante. Mas, com o passar dos anos, ele começou a ver a injustiça e as falhas do sistema e a criticar demais tudo isso. Eu lembro exatamente como o acidente foi anunciado pela primeira vez no rádio. Foi uma mensagem breve, mas meu pai percebeu imediatamente a dimensão da tragédia e ficou muito bravo com o Partido e seus funcionários. Ele achava que isso causaria a morte de muitas pessoas. Meu pai morreu em junho de 1986, alguns meses depois do acidente, mas ele previu muita coisa. Assim, quando assisto a série, vejo a mesma comida soviética que comíamos, as mesmas roupas e penteados, tudo é tão detalhado que é assustador. É como se eu entrasse em uma máquina do tempo”, diz a contadora Elena.
“Até os rostos são todos eslavos, exceto, talvez, pelo do chefe de turno, que mais parece um caipira norte-americano. Claro, as cenas de vodca são exageradas. Nós não viramos doses só por virar”, diz o moscovita Nikolai.
O produtor de TV russo Iúri Golaido pesquisou o assunto a fundo e já até filmou em Tchernóbil. Por isso, ficou duplamente impressionado com a série norte-americana. "A quantidade de detalhes que ela apresenta é incrível", diz.
Chocados com os horrores do sistema soviético
Grigóri Iavlínski, líder do partido político Iábloko, também entrou na discussão. Ele diz que todos seus amigos e conhecidos que tinham conhecimentos sobre as operações de limpeza nuclear foram para Tchernóbil – principalmente como voluntários.
“O mais alto nível de solidariedade humana e dedicação, em qualquer padrão, foi apresentado por dezenas de milhares de pessoas de todo o país que ajudaram a mitigar as consequências do desastre”, diz.
Os internautas afirmam que a série não é só sobre a catástrofe, mas sobre a União Soviética como um todo, uma visão com a qual Iavlinski concorda. O principal problema não era o perigo (por vezes letal), mas as mentiras oficiais monstruosas.
“A falta de liberdade de expressão e de imprensa independente levaram, entre outras coisas, a pessoas celebrando os feriados [bastante ligados ao governo] de maio de 1986 [dia do trabalhador, dia da Vitória na Segunda guerra) em Kiev e outras cidades na zona de radiação de Tchernóbil como se nada estivesse acontecendo, tudo estivesse normal”, diz.
Iavlinski vê essa falta de liberdade de expressão como um dos principais motivos da queda da União Soviética poucos anos depois.
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