Antes de minha primeira viagem à Rússia, percebi que minhas expectativas eram muito altas: meus avós eram russos, e eu sempre quis visitar o pais deles. Sabia muito sobre a cultura russa e até havia experimentado alguns pratos locais, que minha avó costumava cozinhar. Escrevo guias de viagem e estou acostumado a ler vários deles! Os bons sobre a Rússia contêm muita informação histórica. Então, pensei que estava preparado. Mas, depois que cheguei à Rússia em 2004, minha viagem se transformou em uma verdadeira aventura – e me ensinou algumas habilidades de sobrevivência.
Conversa sem palavras
Como um turista comum, decidi visitar Moscou e São Petersburgo primeiro. Não existe barreira linguística nas grandes cidades russas: não é difícil encontrar alguém que fale inglês (embora tenha sido bem mais difícil na minha primeira viagem do que agora!). Por exemplo, alguns atendentes nas estações de trem não entendem os estrangeiros, mas há sempre outra maneira de se comunicar: pode-se simplesmente anotar o destino em um papel. A maioria dos russos consegue ler letras latinas.
É um pouco diferente no interior do país – e também um excelente desafio: na minha viagem à Sibéria, aprendi a usar gestos para me comunicar. Algumas pessoas no trem não sabiam falar inglês, mas na Rússia percebe-se logo: conversar não é apenas com palavras. Acho que, para sobreviver na Rússia, de um modo geral, não se deve ser tímido. Você tem que falar com as pessoas, fazer perguntas bobas (seja como for, elas irão ajudá-lo em qualquer necessidade). Apenas vá e fale! Faz parte da experiência. E a Rússia é toda sobre experiências. Não acredito que alguém possa entender ou ter uma ideia sobre a Rússia somente lendo livros e aprendendo sua história (embora esta seja uma parte importante). É impossível entender a mentalidade russa fora do país.
Durões no bom sentido
Os russos são únicos e diferentes por causa de sua história e geografia. Acho que a imagem dos russos como pessoas duras e difíceis está ligada à sua história. Imagine só: tsares, comunistas, stalinismo, Cortina de Ferro e isolamento em um período de apenas 100 anos. E ainda há a geografia e o clima: para sobreviver, as pessoas são obrigadas a serem duras – mas de uma forma positiva: sempre dispostas a amparar.
Eu conheci muitas pessoas legais na Rússia. Na verdade, a maioria das pessoas que conheci eram muito legais. Depois de minha primeira viagem a Moscou e São Petersburgo, percebi que deveria viajar mais pelo país, mergulhar em seu imenso território. Então, era natural para mim que, na segunda vez, eu pegasse a Transiberiana (meu livro sobre a jornada pela ferrovia já foi publicado em português e espero que, um dia, seja traduzido para o russo).
Assim, embarquei nesse lendário trem em outubro de 2015. Na minha primeira parada, na cidade de Perm, conheci Aleksandr, que é dono de uma pequena agência de viagens na cidade, e juntos fomos ao Museu da História da Repressão Política – Perm -36 (um museu da Gulag). Acredito que este seja um lugar que todo turista em viagem à Rússia (pelo menos, pela Sibéria) deve visitar. Fiquei surpreso ao ouvir que poucos russos sabem sobre esse campo de trabalho forçado soviético da época de Stálin. Graças ao guia russo (e à tradução de Aleksandr), pude entender tudo e posso dizer com certeza: apenas se conhecermos as páginas negras da história, se soubermos a face do “mau histórico”, só assim faremos com que não se repita (como é o caso dos campos de concentração nazistas, tipo Auschwitz, por exemplo).
Naquele dia, em 25 de outubro, era meu aniversário – e eu havia feito uma breve menção sobre isso a Aleksander. Fiquei tão surpreso quando ele me convidou para sua casa, onde sua noiva e sua futura sogra prepararam uma festa para mim, com direito a bolo e parabéns! Conheci aquele cara apenas algumas horas antes e, ainda assim, eles me fizeram sentir como se estivesse comemorando com minha família russa! Nesse mesmo dia, também aprendi com a mãe russa a preparar pelmêni. É um processo muito unificador: prepara-se a carne e a massa, todos juntos, na cozinha!
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Eu já havia provado vários pratos russos com a minha avó, e sabia bem sobre pirojki, blíni e borsch. Mas preparar pelmêni foi uma experiência incrível!
No xilindró por acaso
Mas nem toda minha experiência na Rússia foi tão divertida – até fui parar em uma prisão. Em 2004, na hora que eu estava deixando a Rússia, de São Petersburgo, decidi viajar de trem para a Finlândia. Na fronteira, em uma cidade chamada Vyborg, a polícia de imigração checou meu passaporte e ficou desconfiada: o que um brasileiro estava fazendo em uma cidade fronteiriça daquelas? Por que ele está deixando a Rússia desse jeito, em vez de pegar um avião? E um cara de um país tropical pode parecer muito estranho. Eles me tiraram do trem, e eu o vi partir. Para ser sincero, eu estava um pouco preocupado, aquele era o último trem do dia. Eu achei que, depois da entrevista, eles iriam me mandar para um hotel, mas, em vez disso, os policiais continuaram me fazendo perguntas. Eles chamaram um tradutor e, depois de um tempo, me mandaram para a prisão em Vyborg. Imagine só: dezembro na Rússia, uma cela pequena, sem cobertor, sem colchão! Os oficiais me deram um casaco pesado e pela manhã foi enfim confirmado que eu era apenas um turista comum – não um terrorista –, e eles me deixaram seguir. Eu sei que eles estavam apenas fazendo seu trabalho, mas eu acho que eles não precisavam me mandar para uma prisão... Foi uma parte extrema da minha primeira viagem à Rússia, mas se tornou minha história pessoal e me ensinou a permanecer gentil o tempo todo, aconteça o que acontecer. Tenho certeza de que isso não aconteceria hoje em dia, os russos e os oficiais de imigração são muito mais abertos agora, eles entendem o que é turismo, especialmente depois da Copa do Mundo.
Acho que minhas viagens à Rússia me mudaram bastante. Todas essas histórias, mais a viagem de trem, resultaram em meu primeiro livro “Transiberiana: uma viagem de trem pelo mundo soviético (e por outros países que não me deixaram entrar)”. Eu havia escrito guias de viagem antes, mas nunca uma história de um livro de viagem. Sou grato até mesmo pela prisão russa e todos os desafios que vivenciei no país. Há tantos lugares de tirar o fôlego na Rússia que, para um escritor, é difícil não querer compartilhar.
Entrevistado por Daria Aminova