A palavra “mujique” é simultaneamente parte da língua oficial e gíria. Para complicar ainda mais, alguns a tomam por insulto, enquanto outros acreditam que seja um grande elogio.
Em 2010, o presidente russo Vladimir Putin chamou Leonardo DiCaprio de “verdadeiro mujique”. Ele fez a afirmação porque o ator de Hollywood, ao viajar para São Petersburgo para participar de uma conferência para salvar tigres de Amur ameaçados de extinção, teve que trocar de avião três vezes.
O avião de DiCaprio que partiu de Nova York teve que voltar depois que um motor pegou fogo. Mas seu segundo avião particular foi desviado para a Finlândia devido a uma tempestade de neve. Só no terceiro voo ele conseguiu chegar ao destino.
Em discurso, Putin disse que DiCaprio “abriu caminho até nós como se estivesse cruzando uma linha de frente”. E prosseguiu: “Sinto muito pelo mauvais ton, mas em nosso país chamamos homens assim de ‘verdadeiros mujiques’”.
Quem era o “mujique” na Rússia tsarista?
Em quase toda a cobertura da imprensa do evento, as palavras de Putin sobre DiCaprio foram traduzidas como “um homem de verdade”. Mas isso não é totalmente preciso. A frase “homem de verdade” seria traduzida como “настоящий мужчина” (“nastoiáchi mujchina”), onde мужчина é a tradução exata de “homem”. “Mujik” (мужик), no entanto, é algo diferente.
Na Itália, a palavra “paesan” é algo semelhante a “peasant” em inglês – um trabalhador agrícola não qualificado, aproximadamente equivalente a felá no Egito. Ambas as palavras também podem ser usadas em suas respectivas culturas para significar “amigo” (“buddy” ou “dawg”).
Bem, esse é o primeiro significado básico de um mujique em russo - referente a camponeses, trabalhadores agrícolas etc. Na Rússia tsarista, a palavra mujique era usada, mesmo em leis e documentos oficiais, para se referir a um homem pertencente ao estrato social camponês.
No discurso coloquial, na Rússia pré-revolucionária, mujique era um termo social, mas no discurso de um nobre, assumiu conotações depreciativas: um nobre chamando outro nobre de mujique era algo considerado um insulto grave e quase certamente resultaria em duelo.
Um “bufétni mujique” poderia significar um servo que trabalhava na cantina, um “dvorôvi mujique” significava um servo na propriedade de um nobre etc. No entanto, sempre houve um lado mais elogioso e até honroso dessa palavra – e é assim que ela é mais usada no russo contemporâneo.
Qual é a diferença entre um homem e um “mujique”?
Os russos sempre admiraram seus próprios camponeses – que compunham a maioria da população e formavam a força por trás de todas as vitórias do exército imperial. Desde os tempos da imperatriz Isabel (1709-1762), filha de Pedro, o Grande, “bailes com mujiques” eram organizados no Palácio de Inverno logo após o Ano Novo – o que significava que todos, até os camponeses (se estivessem asseados) podiam participar.
Também é de surpreender que, na vida privada, o imperador Nicolau 1° da Rússia se autodenominava mujique (e chamava sua mulher, a imperatriz Alexandra, de “minha ‘bába’” - palavra usada então para as camponesas). O imperador elogiava a os mujiques como pessoas implacáveis, destemidas e decididas, que fariam qualquer coisa para defender a pátria, o lar e a família.
Este significado permaneceu inalterado ao longo dos tempos, e é usado até hoje. Mas o que nós, russos, queremos dizer quando chamamos alguém de “mujique de verdade”?
Em primeiro lugar, o mujique é distintamente masculino. Ele não necessariamente usa barba, mas certamente é um pouco rude. É também um pouco reservado. Um mujique é definitivamente pesado – física e psicologicamente. Por exemplo, o falecido gênio Stephen Hawking foi definitivamente um verdadeiro mujique – por superar sua doença e se tornar um dos maiores cientistas que já conhecemos.
Um mujique vive em seus próprios termos. Ele respeita a sociedade, mas pode facilmente descartar suas convenções se as considerar inúteis.
O escritor Michael Crichton, em seu livro de memórias “Travels”, descreveu Sean Connery: “Ele está à vontade consigo mesmo e é direto e franco. ‘Gosto de comer com os dedos’, diz ele, comendo com os dedos em um restaurante chique, sem dar a mínima. Você não pode constrangê-lo com trivialidades. Comer é o que importa. As pessoas vêm para um autógrafo e ele olha carrancudo para elas. ‘Estou comendo’, diz ele com severidade. ‘Volte mais tarde.’ Eles voltam mais tarde, e ele educadamente assina seus menus. Ele não guarda rancor, a menos que pretenda.”
Sim, essa é uma descrição de um verdadeiro mujique — algo que Sean Connery certamente era.
Em uma situação difícil e desfavorável, um verdadeiro mujique não muda de ideia sobre suas ações ou se afasta do o caminho que pretende seguir. Quando Napoleão Bonaparte foi convocado para comandar as forças republicanas durante o Cerco de Toulon em 1793, ele era um jovem capitão desconhecido, e os superiores do exército republicano o trataram com franco desprezo.
Mas Bonaparte fez o que queria, ele era um comandante de artilharia realizado e, no final, seu plano se mostrou eficaz: Toulon foi tomada e os monarquistas que a protegiam derrotados. Napoleão era um verdadeiro mujique, no sentido russo – talvez por isso fosse respeitado na Rússia, apesar de ser um inimigo.
Finalmente, mujique, em russo contemporâneo, é um chamado universal às armas. Por exemplo, seu carro parou no meio da estrada e você precisa de ajuda para empurrá-lo. Aproximando-se de um ponto de ônibus com vários homens esperando ali, você não diz algo como “Господа, не могли бы вы помочь…” (“Gospodá, nie mogli bi vi pomotch?” – 'Senhores, vocês não poderiam, por favor…'). Não! Você diz: “Мужики, давайте толкнём!” (“Mujiki, davaite tolkniom! – ‘Mujiques, vamos empurrar!’). Isso implica, ao mesmo tempo, que você respeita todos os homens a quem está se dirigindo e que acredita que eles o ajudarão sem hesitar um segundo. Porque, afinal, há um pouco de mujique de verdade em cada homem russo!