Rússia e russos em ‘Napoleão’ de Ridley Scott: fato ou fake?

Cultura
NIKOLAI KORNÁTSKI
Recém-lançado nos cinemas, drama histórico estrelado por Joaquin Phoenix retrata a ascensão e a queda do lendário imperador francês. Portanto, nada mais natural que o imperador russo Alexandre 1º desempenhe um papel significativo na trama.

A Rússia foi um elemento ativo nas guerras napoleônicas, tanto como aliada francesa como em coligações contra ela. E foi a desastrosa invasão da Rússia por Napoleão em 1812 que marcou o início do fim de sua carreira política.

Os historiadores acusaram o famoso diretor Ridley Scott de tomar inúmeras liberdades poéticas, mas isso não o intimidou. O interessante, porém, é que os aspectos russos não sofreram tanto com os devaneios do cineasta.

O imperador russo era um ávido fã de Napoleão? Não exatamente

O filme mostra Alexandre 1º como um jovem loiro entusiasmado (interpretado por Edouard Phillipponnat, de 24 anos), maravilhado com a genialidade de Napoleão e buscando replicar as táticas militares do imperador francês. O monarca russo se une à coalizão antinapoleônica, a conselho do mais velho e mais experiente imperador austríaco Francisco 2º. No entanto, a ambição de Alexandre não é meramente política: ele tem um aparente desejo de derrotar o invencível francês no campo de batalha. Sabemos o que resultou disso: a Batalha de Austerlitz (ou dos Três Imperadores) em 1805, terminou com a vitória de Napoleão – um episódio descrito em detalhes por Lev Tolstói em “Guerra e Paz”.

Agora, a verdade. A diferença de idade entre os imperadores não era tão grande. Alexandre era mais novo – mas apenas oito anos. Ele tinha 27 anos durante a Batalha de Austerlitz. Em outras palavras, era jovem, mas longe de ser um menino, e seus cachos eram ralos (pelo menos, na pintura de Nicolas Gosse que retrata o encontro de Tilsit, em 1807, já há sinais de calvice). 

É verdade que Alexandre tinha ciúmes da glória militar de Napoleão – aliás, não apenas ele. Também é verdade que o monarca russo demonstrou mais arrogância antes da derrota em Austerlitz. No entanto, a ingenuidade é uma característica que não poderia mais ser atribuída a ele naquela época.

Napoleão venceu em Austerlitz ao atrair o inimigo para uma armadilha? Correto

Um dos momentos de destaque do filme é justamente a Batalha de Austerlitz – uma das vitórias mais expressivas de Napoleão. Graças à sua astúcia, determinação e uma forte máquina de guerra, o francês conseguiu esmagar exércitos superiores — como evidenciado pelo seu exército de 73.500 homens ao emergir vitorioso sobre a força combinada russo-austríaca de 85.000.

As táticas de Napoleão são adequadamente retratadas no filme. O líder dividiu as suas forças em dois grupos; uma delas ficou à vista com a ideia de induzir o inimigo a uma falsa sensação de segurança e promover um ataque na esperança de vitória rápida. Quando os adversários morderam a isca, o segundo grupo entrou em ação, forçando o inimigo a recuar sobre o gelo rachado. Entretanto, os historiadores afirmam que Napoleão exagerou nas estimativas: em vez dos 20.000 soldados que supostamente morreram sob o gelo, este número estaria perto de 1.000, no máximo.

Teriam os próprios russos incendiado Moscou para afastar os franceses? Possivelmente

Depois de Austerlitz, a Rússia e a França tornaram-se aliadas por um breve período. No entanto, Alexandre 1º acabaria por ficar do lado da Inglaterra, o arqui-inimigo de Napoleão. Foi por isso que, em 1812, Napoleão invadiu a Rússia, chegando até a Moscou, a segunda maior cidade do país depois da então capital São Petersburgo. Mas Moscou não foi conquistada — foi simplesmente abandonada. Uma cena do filme mostra Joaquin Phoenix cavalgando por uma Praça Vermelha vazia, olhando ao redor com desolação. Claramente ofendido, ele proclama: “Os russos não podem perder graciosamente”. Logo em seguida, irrompe um terrível incêndio e, para horror e surpresa de Napoleão, descobre-se que foram os próprios russos que atearam fogo em Moscou, a fim de obrigar os invasores a partir.

Aparentemente, foi assim que ocorreu. Hoje, os historiadores têm poucas dúvidas de que o incêndio partiu de uma ordem direta do governante de Moscou, Fiódor Rostoptchin, que também exigiu a remoção de todas as bombas de água da cidade. Além de destruir o abastecimento de alimentos e quaisquer possíveis quartéis para o Exército francês, o incêndio teve outro efeito: causou uma poderosa onda de sentimentos patrióticos entre os russos. O conflito enfim se transformou na Guerra Patriótica (nome este que ainda carrega na historiografia russa). Assim, Napoleão não enfrentou só o exército russo, mas também uma revolta popular — em suma, a nação inteira.

Moscou é realista no filme? Não

Sinceramente, você não verá a verdadeira Moscou no filme de Ridley Scott. A cidade é desenhada com computação gráfica e fica claro que autenticidade não foi uma preocupação. Em poucas cenas, marcos arquitetônicos reconhecíveis brilham ao fundo – a torre do sino de Ivan, o Grande ou as cúpulas da Catedral da Assunção. Inicialmente, o diretor até pensou em filmar o Kremlin na Catedral de Westminster, em Londres (construída no estilo neobizantino dos séculos 19 a 20), porém não recebeu permissão para fazê-lo.

Napoleão não conseguiu conquistar a Rússia por causa das fortes geadas e dos temíveis cossacos? Absolutamente sim, mas não só

Após a exibição nos cinemas, Ridley Scott prometeu disponibilizar uma versão estendida do diretor, com 4,5 horas, no serviço de streaming Apple TV+. Entretanto, no filme para os cinemas, muitos episódios da biografia de Napoleão são apenas pincelados. Isto aplica-se, por exemplo, à invasão fracassada da Rússia, após a qual a sorte de Bonaparte finalmente mudou. Na versão atual, essa campanha militar dura apenas 10 minutos.

Em tão pouco tempo, os criadores não tiveram tempo para realmente explicar por que o comandante perdeu. Conta-se que a campanha se arrastou por muito tempo, as geadas vieram com tudo, os soldados foram morrendo de fome e doenças e a deserção aumentou. Os russos em si não se envolvem em confrontos diretos, mas assediam os franceses com ataques cossacos.

É claro que esta não é a lista completa de motivos. Em primeiro lugar, Napoleão repetiu o erro de Alexandre antes de Austerlitz – subestimou o inimigo. Ele dificilmente esperava que a guerra adquirisse um caráter popular e que o comandante russo Mikhail Kutuzov mostrasse seu talento (inclusive, seguindo o plano da campanha antinapoleônica de Michael Barclay de Tolly de 1810). No entanto, Kutuzov sequer aparece no filme, e a famosa Batalha de Borodinó dura somente três minutos.

Alexandre 1º realmente tentou ficar com a ex-mulher de Napoleão, Josefina de Beauharnais? Não há evidencia disso

A história de amor entre Napoleão e Josefina de Beauharnais (interpretada por Vanessa Kirby) ganha destaque nos filmes — e nos é mostrado que muitas decisões políticas tomadas pelo imperador são diretamente explicadas por acontecimentos de sua vida pessoal. Foi assim que, segundo o longa, ele escapou do primeiro exílio, na ilha de Elba, ao ver um jornal afirmando que Alexandre 1º havia visitado o palácio de Josefina. Napoleão ficou naturalmente furioso – não só o “menino” havia lhe tirado o poder (depois da derrota na Rússia, ele foi obrigado a abdicar), mas agora estava reivindicando a sua mulher. Assim, Bonaparte decidiu recuperar o poder e Josefina.

Após a queda de Napoleão, Josefina e Alexandre se encontravam regularmente. Existe até uma pintura de Hector Vigée intitulada “A Imperatriz Josefina recebe o Imperador Alexandre em Malmaison e apresenta-lhe os seus filhos”. No entanto, Josefina acabou pagando esses encontros com a própria vida. Morreu de pneumonia – cinco dias antes, ela havia saído para passear com o tsar russo em uma noite fria após um baile.

Acredita-se, de fato, que os dois tivessem um caso. Por exemplo, Michael Broers, autor de vários livros sobre Napoleão e consultor do filme, tem certeza de que não foi Alexandre, mas Josefina quem tentou seduzir o imperador russo, a fim de melhorar sua posição. No entanto, não há provas disso, assim como não há uma ligação direta entre as caminhadas de Josefina com Alexandre 1º e a fuga de Napoleão da ilha de Elba.

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