O que há de russo na série “Sombra e Ossos”, da Netflix?

Cultura
ELENA ZÁITSEVA
Na quinta-feira passada (16) estreou a segunda temporada da série sobre uma terra mítica fortemente inspirada no Império Russo do século 19 – segundo a própria autora dos livros homônimos. Mas veremos agora o quão perto os produtores chegaram da realidade.

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Em 2009, a escritora isralense Leigh Bardugo, naturalizada norte-americana, escreveu um romance de fantasia adolescente intitulado “Sombra e Ossos”. A obra, publicada em 2012, se baseia na estética, cultura e política do Império Russo do século 19. Com isso, a autora foi capaz de criar um clássico sobre um herói escolhido em um mundo maravilhoso de árvores de cranberries gigantes e elementos próximos do povo russo de diferentes épocas.

Bardugo simplesmente define o gênero como tsarpunk – uma fantasia inspirada na Rússia do início do século 19. Quando questionada por Breia Brissey, da revista Entertainment Weekly, por que escolheu esse cenário específico, Bardugo explicou: “Acho que há um poder tremendo nas imagens que associamos à cultura e história russas, esses extremos de beleza e brutalidade que se prestam à fantasia. E, sinceramente, por mais que eu ame espadas e jarros antigos de bebida – e acredite, eu amo isso – eu queria levar os leitores a um lugar um pouco diferente. A Rússia tsarista me deu um ponto de partida distinto.”

  1. Nomes geográficos e nomes de personagens

O “Império Russo” da série é chamado de Ravka, habitado por pessoas com magia, mas também moradores comuns – os refuseniks (no livro, a escritora os chama pelo termo otkazatsia por algum motivo, embora não se trate de um substantivo, mas de um verbo). Neste mesmo contexto, o país está em conflito constante com seu vizinho, Shukhan, que se assemelha tanto à China como à Mongólia.

Muitos dos nomes de lugares parecem familiares e divertidos para o espectador russo – há Kertch, Novokribirsk (sic!), Sibéria (ou Tsibeya, como é estranhamente chamada na série) e Novi Zem. No entanto, não estão de forma alguma conectados com seus protótipos reais, a autora apenas usou termos para preencher o mapa.

O idioma de Ravka é inspirado no russo, mas é perceptível para um falante nativo que Leigh Bardugo mal o conhece. Os tradutores russos do romance e os criadores da narração trabalharam bastante para corrigir a confusão com os nomes dos personagens e seus gêneros. É comum, por exemplo, personagens femininas terem um sobrenome masculino, enquanto os personagens masculinos, pelo contrário, possuem sobrenome feminino.

Estes são os casos da protagonista da série Alina Starkov (em vez de Starkova); de um dos primeiros magos poderosos chamado Iliá Morozova (em vez de Morozov), da amiga da personagem principal Zhenia Safin (em vez de Safina) etc. Até mesmo o principal vilão da série, o General Kirigan, perde um pouco seu apelo demoníaco para os espectadores russos quando descobrem que seu nome é Alexander Morozova. 

  1. Caftãs coloridos, uniformes militares e peles russas

Na série, os personagens principais e secundários aparecem em uniformes em estilo russo: sobretudo, uniformes militares e caftãs.

Quando conhecemos a personagem principal da série, Alina atua como cartógrafa no Primeiro Exército (formado por pessoas sem poderes mágicos). Seu uniforme é uma combinação de um gorro de lã de carneiro, um cocar introduzido pelo imperador Alexandre 3º para certos soldados do Império Russo e uma jaqueta (casaco) da época da Primeira Guerra Mundial. No entanto, cabe lembrar que, quando o Exército russo começou a vestir essas jaquetas como uniformes, os chapéus de lã de cordeiro já haviam caído em desuso.

Além disso, para uma mulher no final do século 19 e início do século 20, era quase impossível entrar no Exército russo. É possível lembrar, entretanto, da história de Maria Botchkariova, que, no início da Primeira Guerra Mundial, queria ingressar em um batalhão de reserva, mas foi aconselhada a se tornar enfermeira. Maria não desistiu e apelou diretamente para o tsar, que ficou do lado dela. Esta foi a única maneira de Maria entrar no exército e, eventualmente, receber a Cruz de São Jorge e três medalhas por sua bravura.

O segundo exército, composto por magos, se veste com caftãs de cores diferentes. A cor e o bordado do caftã dependem de que tipo de poderes mágicos a pessoa possui. No Império Russo, o caftã foi extremamente popular por vários séculos. Caftan para o dia a dia eram costurados com pano, como na série; e para variantes festivas usava-se seda e veludo, bem como cores vivas. No início do século 18, a corte de Pedro, o Grande, se empolgou tanto com a decoração dos caftãs – com bordados, galões e enfeites – que o tsar foi obrigado a emitir um decreto restritivo, para não levar seus súditos a despesas adicionais. O caftã era forrado com pele de carneiro para os tempos frios, o que também pode ser visto no seriado.

  1. A família do tsar

Ravka é governada por uma família real e, na série de livros, o nome do tsar é Alexandre 3º – no entanto, na série, o tsar foi renomeado como Pedro e muitas vezes referido simplesmente como Moi tsar, enquanto a rainha é referida como Moia tsarina – ambos os casos imprecisos historicamente. De fato, a realeza russa só poderia ser tratada como Sua Majestade Imperial por um de seus súditos.

O ator que faz o papel do tsar lembra Alexandre 3º (sendo fiel ao livro), que era um homem de grande porte e, segundo memórias de contemporâneos, gostava de aparecer com botas de soldado com as calças por dentro.

Um dos filhos do tsar chama-se Nicolau – o que também parece apropriado para o público russo, levando em conta que Nicolau 2º era filho de Alexandre 3º.

  1. Grigóri Raspútin e a magia dos Grisha

As pessoas com poderes mágicos na série são chamadas de Grisha. Seu nome é derivado de Grigóri Raspútin, o infame amigo da família do último imperador russo Nicolau 2º.

Raspútin emprestou à série não apenas seu nome, mas também um dos personagens mais suspeitos: um padre, também conselheiro do tsar, chamado Aprat. 

Na primeira temporada, o seu papel não é totalmente claro, embora seja óbvio que ele tem uma influência incompreensível sobre o tsar e a corte em geral. Na segunda, os espectadores podem ver o desenvolvimento desse personagem e compará-lo com o trágico destino de Raspútin, que foi assassinado por conspiradores.

  1. Personagens de contos de fadas russos

Como é normal para personagens de fantasia adolescente, Alina e seus assistentes saem à procura de artefatos mágicos ao longo da série, que, no mundo de Leigh Bardugo, são chamados de amplificadores. Isso porque as criaturas e seus elementos seriam capazes de aprimorar as habilidades mágicas de certos magos. Dois dos três artefatos estão diretamente relacionados ao mundo dos contos de fadas e tradições russas. 

A primeira são as escamas de uma criatura chamada Rusalye. Bardugo a descreve como um dragão marinho dos contos de fadas infantis, que atrai mulheres bonitas para debaixo da água. Nas lendas russas, a rusalka é um espírito maligno que aparece como uma mulher de cabelos longos e roupa branca no campo, água ou floresta (uma espécie de iara russa). Ela é capaz de fazer cócegas em uma pessoa até a morte ou afogá-la. Como não têm escamas ou rabos de peixe, não se pode obter nenhum “artefato” por meio delas.

O segundo elemento encontrado por Alina Starkov é o Pássaro de Fogo, um pássaro mítico com asas de fogo que seria a alma do Reino de Ravka. Nos contos de fadas eslavos, este é um pássaro com asas douradas e prateadas que emite um brilho intenso. É conhecido por se alimentar de maçãs douradas que conferem juventude, beleza e imortalidade, e seu canto pode curar os enfermos. Capturá-lo é a missão clássica dos protagonistas de contos russos. 

Na segunda temporada da série, os fãs sem dúvida encontrarão outras coisas relacionadas ao Império Russo, sobre as quais não escreveremos – para não dar spoiler! Apesar das falhas, “Sombra e Ossos” é um mundo de charme eslavo que vale a pena conhecer.

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