Em 1971, concorreu à premiação do 7° Festival Internacional de Cinema de Moscou um filme independente, intitulado “The Sandpit Generals” (mas que foi distribuído à época pela American International Pictures também sob o título "The Wild Pack" e relançado, em 1975, provavelmente pelo próprio diretor, como "The Defiant"). E, apesar de não levar nenhum prêmio, foi justamente a participação neste evento que garantiu a sobrevivência da película.
A produção, uma adaptação cinematográfica da obra “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, também tinha de tudo para não ter participado do festival, já que, em ainda abril de 1971, o Departamento de Estado dos EUA declarou que boicotaria o evento e não credenciaria qualquer delegação para visitá-lo.
“Porém, uma pequena empresa concordou em conceder o filme. Ele mesmo não recebeu nenhum prêmio no festival, mas concorreu. Depois de dois anos, o filme entrou no circuito, e tanto para o governo, como para o público, isso foi muito bom”, disse o crítico de cinema Serguêi Lavrentiev em um episódio do talk-show "Zakriti pokaz" (do russo, “Exibição Fechada”), em 2019, no Primeiro Canal estatal.
Acontece que o filme se tornou um hit na União Soviética, com uma bilheteria de mais de 40 milhões de espectadores. Mas, em 1997, quando o Primeiro Canal quis transmiti-lo na TV pela primeira vez, descobriu que não seria tão simples assim.
“Pedimos à Columbia Pictures, mas descobrimos que ela não tinha cópias do filme, e nem mesmo a Biblioteca do Congresso respondeu nada de muito concreto sobre os direitos dele”, contou na época, em entrevista à TV, Konstantin Ernst, diretor-geral do canal.
Em junho daquele ano, enquanto rodava Los Angeles atrás de aquisições, Ernst acabou encontrando o livro de um produtor cuja família era da cidade de Gomel (atualmente, na Bielorrússia) e que tinha feito centenas de títulos — e, coincidentemente, aquele também.
“Eu o procurei na lista telefônica ali mesmo, na loja, o encontrei no dia seguinte e então ele me contou que o filme foi um verdadeiro fracasso nos EUA e, por isso, ele não pagou o diretor mas, como forma de recompensá-lo, lhe deu os direitos sobre o filme”, contou Ernst.
O diretor Hall Bartlet (1922-1993) tinha morrido havia alguns anos e os direitos do filme passaram à família. Assim, depois de contatá-la, Ernst finalmente conseguiu transmiti-lo na TV russa.
Gosfilmfond entra em ação
Já em 2019, quando o título foi exibido na íntegra no talk-show "Zakriti pokaz", do Primeiro Canal, o apresentador Aleksandr Gordon contou em detalhes sobre a cópia restaurada que exibia ali, com direito a uma ampla discussão adicional de mais de uma hora.
“Quando decidimos transmitir o título, o [órgão estatal russo de preservação cinematográfica] Gosfilmfond tinha uma única cópia do filme, que ficou guardada por 50 anos, em ótimas condições de armazenamento — porém, sem possibilidade de ser exibida. Então, começaram a restaurá-la manualmente, quadro por quadro, e depois coloristas e técnicos lhe conferiram as mesmas condições em que os espectadores do festival de Moscou a viram”, explicou.
O cinegrafista argentino Ricardo Aronovich, que participou da equipe de “Capitães da Areia” e também do talk show de Gordon nota, porém, que a cópia deixa de fora partes dos quadros que ele mesmo filmou: “Quando você olha para o filme hoje, só vê metade da tela, porque filmamos em CinemaScope, formato 1 por 2,15. Isso me faz pensar que a cópia não foi feita a partir de cópias digitais, e nem sequer de DVD, mas de VHS.”
E, realmente, as cópias que chegavam à URSS tinham formato anamórfico e, quando as exibiam ali, as ajustavam para o formato local de tela grande, deixando de fora do quadro parte da imagem.
De qualquer maneira, foi o sucesso alcançado pela película que a salvou da extinção na URSS e, posteriormente, na Rússia.
Sucesso soviético e além
“Os anos 1970 foram terríveis para o cinema e marcados por uma censura muito vigilante. Depois da Primavera de Praga, passou-se a ver em tudo um revisionismo tcheco e lutava-se contra isso. Assim, só entravam cinco filmes norte-americanos ao ano no circuito do país: sobre o cachorro Benji, sobre um leão marinho ou outros animais incríveis. Alguns outros filmes estreavam, mas com enorme atraso. Então, ‘Capitães da Areia’ foi bom para o governo e para os espectadores. Para o governo, porque era baseado no romance de um autor comunista, popular entre nós e altamente propagandeado, Jorge Amado. Um filme sobre crianças abandonadas sob o amaldiçoado sistema capitalista. Já para o povo, se tratava de um melodrama, com os mais incríveis e belos jovens heróis, que dava prazer de olhar”, diz o crítico Serguêi Lavrentiev.
É preciso lembrar, porém, que a produção norte-americana rodada na Bahia usou alguns atores locais, mas os protagonistas eram interpretados por dois jovens loiros de olhos claros, em uma clara decisão eugênica que é atacada pelo próprio cinegrafista Ricardo Aronovich. "Aqueles olhos azuis, é isso o que me incomoda", diz ele no talk show do Primeiro Canal.
As cenas de nudez também tiveram repercussão entre os jovens e influência sobre a bilheteria, e muitos atribuem a elas o sucesso do filme.
Mas um fator inegável para seu êxito foi a trilha sonora, com música do baiano Dorival Caymmi.
Com “Capitães da Areia”, sua Suíte do Pescador ficou tão famosa que gerou uma infinidade de versões em russo, como escreve a pesquisadora Marina Darmaros em um artigo acadêmico do peiódico Tradução em Revista, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em que discorre sobre essa infinidade de "textos de substituição".
“A letra vertida ao russo [na versão mais disseminada, gravada pelo grupo Nestchástni slútchai, em 1998] não tem qualquer ligação com o texto de Caymmi em português e, ao invés de um pescador colocando a jangada no mar e partindo para o trabalho, a canção russa discorre sobre meninos de rua”, escreve Darmaros.
A pesquisadora também localizou e traduziu um trecho autobiográfico do presidente russo Vladimir Putin que reitera o sucesso soviético do filme à época: “Nos primeiros anos de escola, não me aceitaram entre os pioneiros [movimento equivalente ao dos escoteiros na URSS]. Afinal, criei-me no pátio [dos prédios], onde a autoafirmação de uma criança se manifesta de maneira completamente diversa. Viver no pátio e criar-se nele é o equivalente a viver na selva. É muito parecido. Muito! No pátio, a vida é livre. A vida da rua é, em si mesma, muito livre. Exatamente como no filme ‘Capitães da Areia’. Para a gente, era o mesmo. A diferença estava, talvez, apenas nas condições climáticas. Em ‘Capitães’ era mais quente, e lá a garotada se reunia na praia. Mas, de resto, o que acontecia com eles e com a gente era absolutamente a mesma coisa.”
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