Em meados de fevereiro, em plena pandemia, um homem loiro e atlético se postava nu na rua Oscar Freire, em São Paulo, diante de uma pilha de paralelepípedos, para surpresa de transeuntes de classes diversas. Do outro lado da rua, um sapateiro uniu-se a uma idosa e, sentindo-se ofendidos, os dois lhe gritavam impropérios em coro e mostravam o dedo médio. Já o símbolo vivo do humanismo padre Júlio Lancellotti, que também estava presente no momento, questionava aos passantes: “E se fosse um homem negro? Podem imaginar?”
Era exatamente este o intuito da ação. O homem nu, que escondia as partes íntimas com as mãos, era o russo Fyodor Pavlov-Andreevich, 44, e não era a primeira vez que fazia uma performance radical: em 2016, ele ficou amarrado a um poste no Rio de Janeiro com um cadeado de bicicleta no pescoço para refletir sobre o episódio em que um grupo de justiceiros deixou em semelhante situação um adolescente de 14 anos.
“Sentei ali nu e esperei para ver o que acontecia. Alguns minutos depois, um Mercedes branco parou ao meu lado e surgiu uma senhora nele perguntando: 'O que aconteceu com você, menino? Vou te ajudar!' Ela chamou a polícia, e eu não dizia nada, olhava para o céu. Nessas sete horas de performance, chegaram policiais e bombeiros, pararam motoqueiros, entregadores de pizza e me fotografavam. Ninguém ofereceu ajuda ao menino negro”, diz Fyodor.
Filho da aclamada escritora Liudmila Petruchévskaia (cujo autobiográfico “A menininha do hotel Metropol” foi lançado em português no ano passado em tradução de Cecília Rosas para a Companhia das Letras), Fyodor trabalha e vive entre o Brasil e a Rússia há mais de 10 anos. Aliás, com seu amor pelo país adotado, ele conseguiu trazer a mãe, em 2018, já octogenária, para se apresentar no teatro da Livraria Cultura, em São Paulo, e lançar sua primeira tradução aqui, também pelas mãos de Rosas, de “Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha”.
A aproximação de Fyodor do mundo da performance, também não foi ocasional, provavelmente influenciada pelas incursões no mundo do teatro, onde a mãe tem grande relevância. Desde os anos 1990, ele teve uma prolífica carreira como apresentador de TV, que se estendeu dos 15 aos 28 anos de idade. Mas acabou optando, como ele mesmo diz, pela “miséria e fome”, ou seja, a mais ingrata das artes plásticas, segundo o próprio: a performance.
Foi só aos 32 anos, porém, que ele compreendeu que seu caminho estava nesse tipo de arte: “Mas é preciso entender que, de todos os gêneros artísticos, a performance é o mais miserável e esfomeado. É só assim que se pode fazer uma arte honesta, e se você decide ser artista na esperança de começar a fazer dinheiro, então o que te espera é o fracasso", diz.
Arte (a)política
Classificado pela versão russa da revista “Hello!” como o “guru da provocação artística”, Fyodor disse à agência de notícias russa Tass, “nunca ter se envolvido com arte política ou social”. Mas não é o que se depreende a partir de suas obras.
Devido à performance “Foundling” (em português, “Enjeitado”), por exemplo, ele foi detido e levado a julgamento em Nova York, ao tentar adentrar o Met Gala — a noite anual de angariação de fundos para o Metropolitan Museum — espremido, nu, em uma caixa de vidro fechada com parafusos. O resultado não foi nada acolhedor para uma noite de caridade.
Hostilidade arquitetônica
Fyodor tem uma visão que conecta as grandes e muitas cidades que percorre à humanidade ou falta dela através de seu planejamento. “Com a crise humanitária, cabe aqui o olhar para a arquitetura hostil cada vez mais presente mundialmente nos grandes centros urbanos”, diz.
É este também o ponto de vista da sinóloga Elena Kilina, de 34 anos, que vive em São Paulo. Nascida na Sibéria, na fronteira com a China, ela se formou em estudos orientais na Universidade de Novossibirsk, fez mestrado em Lund, na Suécia, sobre a urbanização japonesa e, depois de viver entre China, Espanha e Suécia, radicou-se no Brasil – pelo menos enquanto elabora seu doutorado na Unicamp, ligando problemas urbanos de China, Brasil e Rússia. Essa temática também rendeu pano para manga em suas performances artísticas, que conduz de maneira cruzada com a pesquisa acadêmica. Devido à temática a que se dedica, Elena foi apelidada de “a artista dos Brics”.
Formada no conservatório musical em piano e voz, Elena traz em suas performances elementos sonoros e audiovisuais para estabelecer uma “metafísica dos espaços”, como ela mesma diz, parafraseando Tarkóvski. É isso o que ela busca em “O Estado do Jogo”, por exemplo, que apresentou no espaço Breu, na Barra Funda, em São Paulo, em conjunto com outros artistas.
“O Minhocão é nosso estudo de caso aqui para mostrar que a barreira da língua não importa, mas sim o senso de pertencimento, a solidão e até a decadência, já que é ela que o Minhocão representa, sempre à beira da demolição. Além disso, esse espaço do Minhocão é um ápice da democracia em São Paulo, reunindo suas diversas classes sociais, ao mesmo tempo que um símbolo da brutalidade e da violência. O Minhocão é uma ponte entre o passado e o futuro, uma espécie de enorme poesia nessa enorme pressão urbana”, diz Elena ao Russia Beyond.
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