O ‘orgânico vivo’ de Rei Lear da Estepe em nova tradução brasileira

Retrato de Ivan Turguêniev, por Iliá Repin

Retrato de Ivan Turguêniev, por Iliá Repin

Galeria Tretiakov/Wikipedia
Obra de Turguêniev tem nova versão em português feita por Jéssica Frajado e sai pela editora 34. E, como nota crítico inglês, não tem nada de “insignificante ou falsa” em relação a Shakespeare.

Um dado importante da formação do cânone russo é que a literatura secular, ou seja, aquela fora dos domínios da igreja, só desabrochou de fato na Rússia no século 18. Até a língua russa se desenvolver com uma cultura literária (com a escrita de Aleksándr Púchkin, poeta considerado o pai do russo literário), a literatura era quase exclusivamente composta de traduções na Rússia. Estão postas aqui as questões do influxo externo ocidentalizante, modificando as cores da cultura russa, motivo de constantes debacles na Rússia até os dias de hoje, assim como as idas e vindas da elite russa entre os saltos “civilizatórios”. À intelligentsia russa, é claro, restou atinar estas questões, acertar os ponteiros do país com o mundo.

“O Rei Lear da estepe”, de Ivan Turguêniev, que a editora 34 lança traduzido por Jéssica Farjado, é um exemplo destas pulsões ocidentalistas em terreno russo, que retomam as estruturas de clássicos europeus nos rincões – a tardia climatização de Shakespeare.

Turguêniev, ele mesmo um dos maiores conhecedores da obra de Shakespeare na Rússia, já ensaiara uma tradução de “Rei Lear”, e sua obra é repleta de tipos shakespeareanos. Mas é na verificação atenta das histórias da terra natal de sua mãe, Spasskoie, e na transposição destas para estruturas literárias mais complexas, que se dá o brilho de mestre.

A peça de Shakespeare, como se sabe, retrata um rei idoso que resolve dividir seu reino entre as três filhas tomando por parâmetro o amor que cada uma lhe demonstra. Regan e Goneril são bajuladoras, porém falsas, enquanto Cordélia, a mais nova e que mais ama o pai, decide não adulá-lo com futilidades. Em resumo, Lear toma todas as decisões erradas e termina louco e sem qualquer poder.

A narrativa, que poderia muito bem estar na antologia de contos de Turguêniev de mesmo ethos, “Memórias de um caçador” (1852), se inicia em clima de Decameron: amigos contando histórias numa noite de inverno. Eles discutem sobre os tipos shakespeareanos e como estes são “profunda e verdadeiramente arrancados das próprias entranhas da ‘essência’ humana”, além da “verdade de vida” contida neles. Até que o anfitrião menciona ter conhecido um Rei Lear, certo Martin Petróvitch Kharlov, “homem de estatura gigantesca” da Rússia pré-reformas. Kharlov tem a premonição de que morrerá em breve e decide dividir suas terras legalmente entre as duas filhas: o destino está traçado.

O que seria o carro-chefe da obra, ou seja, a estrutura shakespeariana, torna-se um traço menor das questões, pois o achado de Turguêniev, como Jéssica Farjado menciona no posfácio, é dar enfoque às questões éticas e morais nas “camadas mais baixas da sociedade, com um viés social, afetivo e psicológico”.

Ainda no posfácio encontramos uma apreciação da obra por Edward Garnett, que nota que o grande valor artístico ali está no “todo orgânico vivo, que brota das raízes profundas da própria vida”, enquanto tantas obras de arte são “fabricadas e coladas a partir de um plano engenho” mas, ao mesmo tempo, são “insignificantes ou falsas em comparação”.

Não nos parece absurdo, portanto, relacionar a pesquisa e o interesse pelo povo russo com o momento pelo qual a Rússia passava em 1870: a aproximação da elite progressista, da qual Turguêniev fazia parte, ao socialismo agrário, os narodnik (de народничество, populismo).

Se em Pais e filhos (1862) Turguêniev “adotara” o niilista Bazárov, tipo tomado como radical no período, aqui o autor parece tentar responder ao seu tempo através do dado popular, mostrando a profundidade e o alcance dos embates morais daquele povo, que estava em xeque desde a problemática libertação dos servos em 1861.

A grandeza da obra de Turguêniev reside, portanto, não na síntese da peça de Shakespeare, mas no poder de apreensão do povo russo e suas especificidades, como é verificável em “O Rei Lear da Estepe” ou mesmo em “Memórias de um caçador”. Este poder de apreensão foi notado tanto por Leskov quanto por Tolstói, autores com obras calcadas nesta ideia de povo. Não à toa, Tolstói retoma “Memórias de um caçador” para compor as cenas campestres de “Anna Kariênina”.

Vale notar que o volume conta ainda com um “Discurso sobre Shakespeare”, escrito por Turguêniev para o tricentenário de Shakespeare, em 1864. O discurso foi preparado para uma celebração no Teatro Imperial que acabou proibida pelo tsar Aleksandr 2° — mas mesmo assim foi lido pelo historiador Piotr Petróvitch Pekárski em uma noite literária e musical de 23 de abril de 1864.

César Marins é criador da página "Literatura Russa", professor no projeto "Leituras Russas" e mestrando em Teoria Literária na FFLCH-USP.

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