Viravolta dostoievskiana: editora 34 lança ‘Escritos da casa morta’

Pavel Balabanov/Sputnik
Com título, editora brasileira encerra publicação de obras completas de Dostoiévski, que iniciou no ano 2000.

O filósofo russo Lev Chestov, em seu ensaio sobre Dostoiévski, define a obra tardia do autor como um desenvolvimento natural dos temas apresentados nas suas duas obras pós-cárcere: “Escritos da casa morta” (1860-1862) e “Memórias do subsolo” (1864). Para quem conhece relativamente a obra de Dostoiévski e sua biografia, a afirmação não espanta: o trauma da falsa execução e o subsequente perdão do tsar, além dos cinco anos na prisão de trabalhos forçados (a “kartoga”) em Omsk, Sibéria, modelaram tanto seu caráter quanto o fabulário a respeito do autor, definindo grande parte da posterior recepção de sua obra.

Coincidentemente, foi com “Memórias do subsolo” vertido ao português por Boris Schnaiderman que a editora 34 iniciou, no ano 2000, a publicação no Brasil das obras completas de Dostoiévski traduzidas diretamente do russo. Vinte anos e muitos volumes depois, a empreitada editorial chega ao fim com o lançamento de “Escritos da casa morta”, em tradução de Paulo Bezerra. Assim, somos convidados mais uma vez a adentrar no grande laboratório de personagens e ideias que é a prisão de Omsk.

Dostoiévski/Goriántchikov

Escritos da casa morta” é um livro semi-ficcional, se levarmos em consideração que tudo e todos ali existiram, com exceção do protagonista e narrador, Aleksandr Petrovitch Goriántchikov, condenado a 10 anos de trabalhos forçados após ter assassinado sua esposa.

Dostoiévski foi preso em 1849 por participar do círculo Petratchevski, um grupo da intelligentsia russa sem inclinações revolucionárias e que se reunia semanalmente para discutir os problemas sociais do país, questões que o tsar preferia que permanecessem silenciadas.

Grosso modo, Dostoiévski foi preso por certo pendor socialista cristão, desejoso de emancipar os servos na Rússia, moral já expressa em “Gente pobre” (1846), seu romance de estreia, que retrata uma experiência que utilizará mais tarde para descrever, por exemplo, o idealismo extremado de Raskôlnikov em “Crime e castigo”.

Assim, de maneira muito inteligente, Dostoiévski se divide em dois: é o indivíduo intelectualizado que organiza os escritos e escreve o prefácio e é também o indivíduo que experimenta a vida na prisão, dividindo a rotina com outros prisioneiros e narrando essa experiência em seus escritos.

Título de fin de siècle

Bastante conhecida mundialmente, a obra foi publicada aqui e em outros países como “Recordações ou Memórias da casa dos mortos”, título que acompanha a recepção de Dostoiévski na França de fin de siècle e que reforça sua imagem de escritor de vida sofrida, tal como apresentada no livro “O romance russo” (1886), de Melchior de Vogüé.

Como afirma o tradutor Paulo Bezerra em sua apresentação, explicando a literalidade da nova tradução do título, os galés (presos que cumprem trabalhos forçados) apresentam vivacidade, assim como os funcionários da cadeia; ali não há mortos, mas a casa é morta, no que Bezerra afirma ser uma reminiscência do Inferno de Dante.

Curioso notar que o título também foi “retificado”, em em 2016, nos Estados Unidos, onde a tradução de Richard Pevear e Larissa Volokhonsky recebeu o nome de “Notes from a Dead House”. Também é importante ressaltar certo movimento editorial tímido que “desfaz” títulos errôneos de livros, já que recentemente a Companhia das Letras acabou com a “Revolução dos bichos” de Orwell, título remanescente do contexto histórico da ditadura militar brasileira, e agora temos a “A Fazenda dos animais”.

Escritos inspirados em notas da prisão

Durante seu período no cárcere, Dostoiévski contou com a compaixão do médico Troitski, que o autorizava a escrever suas notas sobre a vida na prisão, enquanto outro funcionário da enfermaria guardava estes escritos, os “Cadernos siberianos”. Já em liberdade, o autor tentou dar forma aos cadernos com uma história de paixão, ciúme e morte, mas desistiu em favor desta forma não linear que acabou por produzir nos “Escritos”.

Mas, se o feminicídio se mantém como crime cometido por Goriántchikov, toda a narrativa deixada de lado parece ter sido reaproveitada no romance “O Idiota” (1867-69), no arco dos personagens Rogójin e Nastássia Filippovna.

Aliás, a afirmação de Chestov com a qual abrimos o artigo não poderia ser mais verdadeira: a Sibéria se torna recorrente na obra de Dostoiévski, o “quarto de despejo onde Dostoiévski descarta as efígies de cera”, como diria Vladímir Nabôkov no ápice de sua característica má vontade com o autor. Aliás, vale notar que o general Ivan Nabôkov, tio de Nabôkov, foi o chefe da comissão do inquérito que julgou Dostoiévski.

Assim, o resultado final é um livro constituído por cenas da vida e dos costumes na prisão de criminosos e presos políticos; descrições dos tipos sociais dos condenados que vinham de toda a Rússia para a Sibéria; e as narrativas dos condenados sobre seus passados, num misto de histórias de crime e folclore de cadeia como saída para sobreviver onde se têm seus direitos reiteradamente negados.

Aliás, o aspecto de denúncia das condições das “kartogas” russas foi o que mais chamou atenção para a publicação da obra na revista grossa “Vrêmia” (do russo, “Tempo”), garantindo o sucesso financeiro da empreitada editorial iniciada por Fiódor, assim que saiu da prisão, em conjunto com seu irmão Mikhaíl.

A tese de Chestov de que a forma literária de Dostoiévski se firmaria aqui enquanto sua filosofia se desenvolveria nas “Memórias do subsolo” converge com as impressões do biógrafo Leonid Grossman, que nota que “[em “Escritos”,] o estilo inimitável de Dostoiévski se afirmou, e a inalterável lei de seus romances épicos tomou forma, baseada em dados exatos, incidentes da vida real, crimes, eventos políticos e uma variedade de incidentes da vida humana, dando origem a protagonistas de dramas pessoais extraordinários.”

Por fim, vale considerar que, dadas as diferenças, este “livro assustador [...] que enfeita o fim do sombrio reinado de Nikolai 1° como a inscrição de Dante sobre a entrada do inferno”, como notou Aleksandr Herzen, é o primeiro de muitos a apresentar a vida no cárcere em solo russo, gênero perpetuado por Tchékhov em “A Ilha de Sacalina” e por todo o século 20 através da literatura de gulag de Soljenítsin e Chalámov. Em tempos de “direitos humanos para humanos direitos”, um livro do século 19 que humaniza criminosos pode até surpreender alguns.

César Marins é criador da página "Literatura Russa", professor no projeto "Leituras Russas" e mestrando em Teoria Literária na FFLCH-USP.

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