Nos anos 1670, o Império Otomano entrou em conflito com o Tsarado da Rússia. Duzentos anos depois, o pintor realista Iliá Repin ouviu uma história sobre cossacos que teriam escrito uma carta humilhante para Maomé 4º, o sultão do hostil Império Otomano.
A história inspirou Repin a criar uma de suas grandes obras-primas. Embora muitos acreditem – não apenas devido ao esforço artístico de Repin – que a carta foi um documento histórico genuíno, os historiadores têm suas reservas.
O conto
No verão de 1878, o renomado artista Iliá Repin visitou o famoso empresário e comendador das artes Savva Mamontov em sua propriedade em Abramtsevo, nos entornos de Moscou. Durante uma das confraternizações, o artista ouviu uma história que se tornaria inspiração.
Os cossacos, segundo a história, receberam uma carta do sultão do Império Otomano prescrevendo-os a se render. Depois de receberem a carta, os cossacos se reuniram para redigir sua resposta e o fizeram nos termos mais humilhantes possíveis.
O conto inspirou o artista a criar uma de suas obras-primas mais conhecidas, mas os historiadores duvidam que a carta seja algo mais do que um enredo folclórico que visava a destacar a grandeza, o orgulho e o amor pela liberdade dos cossacos.
As cartas
Há uma versão amplamente divulgada da correspondência entre o sultão otomano e a resposta subsequente dos cossacos. A primeira costuma ser formulado da seguinte forma:
Sultão Maomé 4º para os cossacos zaporojianos:
Como o Sultão; filho de Maomé; irmão do Sol e da Lua; neto e vice-rei de Deus; governante dos reinos da Macedônia, Babilônia, Jerusalém, Alto e Baixo Egito; imperador dos imperadores; soberano dos soberanos; cavaleiro extraordinário, jamais derrotado; fiel guardião do túmulo de Jesus Cristo; comissário escolhido pelo próprio Deus; a esperança e conforto dos muçulmanos; fundador e grande defensor dos cristãos – ordeno a vocês, cossacos zaporojianos, que se submetam a mim voluntariamente e sem qualquer resistência, e que desistam de me incomodar com seus ataques.
Sultão turco Maomé 4º
A resposta desafiadora, satírica e vulgar dos cossacos ao sultão é frequentemente recontada nos seguintes termos:
Cossacos zaporojianos ao sultão turco!
Ó sultão, demônio turco e maldito amigo e parente do diabo, secretário do próprio Lúcifer. Que diabos de cavaleiro és tu, que não consegues matar um ouriço com o teu traseiro nu? O diabo defeca e seu exército come. Não irá, filho de uma rapariga, fazer de súditos os filhos dos cristãos. Não temos medo de seu exército; por terra e por mar iremos combater a ti. Que se dane a sua mãe.
Sois um serviçal babilônico, fazedor de rodas macedônico, cervejeiro de Jerusalém, devorador de cabras de Alexandria, criador de porcos do Alto e Baixo Egito, porco da Armênia, ladrão da Podólia, catamito da Tartária, carrasco de Kamianets e bobo de corte de todo o mundo e do submundo, um idiota perante Deus, neto da Serpente e câimbra de nosso falo. Focinho de porco, bunda de égua, vira-lata de abatedouro, testa sem crisma. Que se dane você e sua própria mãe!
E assim, os zaporojianos declaram, seu canalha. Você não será nem mesmo pastor de porcos para os cristãos. E agora concluímos, pois não sabemos a data e não temos calendário; a Lua está no céu, o ano com o Senhor. O dia é o mesmo aqui e aí; por isso, beije nossa bunda!
- Kochovi otaman (patente militar cossaca) Ivan Sirko, com todo a comitiva zaporojiana
Uma invenção romântica
Esta versão da carta desafiadora inspirou Iliá Repin, pois exalava o temperamento e emoções dos cossacos que poderiam ser refletidas de forma colorida na futura pintura. Os historiadores acreditam, porém, que a carta foi criação popular, e não um documento histórico genuíno.
“A correspondência do sultão com os cossacos de Tchihirin [região na atual Ucrânia] sofreu uma transformação textual em algum momento do século 18, por meio da qual os locais de Tchihirin se tornaram os zaporojianos e a sátira controlada da resposta [original] foi rebaixada à vulgaridade. Nessa versão vulgar, a correspondência cossaca se espalhou amplamente no século 19. Em vários casos, foi citada como documento autêntico, em grande parte, ao que parece, porque as cartas tendiam a confirmar uma imagem romântica preconcebida de como os cossacos eram percebidos [...]”, conclui Daniel C. Waugh, estudioso da Rússia Medieval e Moderna na Universidade de Washington, em Seattle (EUA).
Os pesquisadores também acreditam que a carta foi um exemplo de panfletos antiturcos, desencadeados por sentimentos antiturcos que prevaleciam na Europa na época. Eles destacam que a data da carta difere de uma fonte para outra, e o documento também tem diferentes versões, signatários e destinatários – tudo isso atestaria a inautenticidade da carta.
Para Repin, no entanto, a autenticidade do documento não fez muita diferença. O artista estudou o povo amante da liberdade, fez o primeiro esboço a lápis da futura obra-prima em 26 de julho de 1878 e concluiu a obra em 1891.
Atualmente, o esboço está exposto na Galeria Tretyakov, em Moscou, e a pintura acabado, no Museu Russo de São Petersburgo. Uma segunda versão inacabada da pintura é permanentemente exibida no Museu de Belas Artes em Carcóvia, na atual Ucrânia.
LEIA TAMBÉM: Você esteve errado sobre os cossacos esse tempo todo e nem imaginava