Cena do filme "Os dois combatentes".
Aleksandr Gintsburg, Uzbekfilm, 1943A coisa é que venho fascinado com a tradução da voz, ou com o que chamo de “dar à voz”, invertendo os lugares tradicionais da conversa: não pretendo, nem acho lá muito pretendível, dar voz a ninguém; porque essa doação supõe um domínio concedido, um espaço limitado ao outro, que aparece quando deixo. Dar algo à voz, isso sim é alguma espécie de acolhida, porque marca a diferença dos corpos, o esforço de um aprendizado e a pervivência do que se altera nas repetições.
Começo assim, algo abstrato, neste relato que me pedem de um gesto singelo, porque tenho cá meu percurso como poeta e tradutor, que passa pela criação do grupo Pecora Loca com outros professores e alunos da UFPR, apenas para traduzirmos poesia vocal e depois performarmos em português e outras línguas; passa também pela minha prática de poeta, que vivo incorporando poesia alheia aos próprios versos, ressignificando por mudar o tempo dos poemas.
Foi para fazer uma performance de cantos greco-romanos antigos, de vínculo ritual ou religioso, que conheci Luís Gustavo Carvalho e Maria Vragova, no Festival Artes Vertentes; cantei, toquei, percuti e dancei ao ar livre, em Tiradentes, graças a eles; toquei, percuti, dancei e cantei também com Ricardo Aleixo, no dia seguinte, e ele quis precisamente dar à voz dele um poema meu, Tróiades: foi das grandes experiências, de um lado me apresentar como voz que permeia os antigos, de outro como texto e voz de poema meu atravessado por um poeta e performer que tanto admiro. Voltei lá depois, pra performar com André Capilé um improviso nosso, cansanção :: curimba, e pra ler poemas meus ao lado de Ricardo Domeneck e Angélica Freitas, dentre outros. Nesse meio tempo descobri, por exemplo, que conheci Antanas Sutkus, esse poeta sutil da fotografia, por causa de Gustavo e Maria, que organizaram uma exposição dele no Brasil. Também pude, por causa deles, pasmar com Maximishin, entre outras coisas.
Por isso atento tanto a eles. Por isso parei imediatamente quando Luís Gustavo indicou, no Facebook, a canção Tiomnaia notch, de Nikita Bogoslovsky, na gravação de Mark Bernes, durante o filme Os dois combatentes. Eu desconhecia, ou deslembrava, dessa peça, que me comoveu até os ossos, durante esta noite em breu que vivemos no mundo, por causa da pandemia da Covid-19, mas especificamente no Brasil por causa de um delírio político que calhamos de chamar governo. A travessia dessa noite, marcada pelo amor em meio à guerra, me disse muito sobre a dupla travessia que enfrentamos, e a interpretação crua de Bernes (em voz e expressão), me convocaram a tentar traduzir.
Foi graças ao Irineu Franco Perpetuo, figura gentilíssima, além de grande tradutor do russo no Brasil (é dele, por exemplo, a tradução de O mestre e Margarida, de Bulgákov, um dos livros que mais me impactou nos últimos anos), que pude ter um conhecimento mais preciso da letra de Bogoslovsky. Assim, fizemos uma espécie de microlaboratório de tradução — nos moldes sugeridos por Haroldo de Campos ainda nos anos sessenta — em que, colaborando o conhecimento linguístico de Irineu, com a minha prática de tradução poética e vocal, pudemos chegar a uma tradução poética cantável dessa pequena pérola do cancioneiro russo, que em português virou “Noite em Breu”.
Eu não sou músico profissional de execução excelente, mas muitos cantores que me movem também não são (Nelson do Cavaquinho, Brassens, Bob Dylan, pra ficarmos em três), por isso lancei na minha página no SoundCloud uma versão gravada, improvisadamente, no meu escritório, em casa. Quero acreditar que a força da música está, em grande parte, nos amadores, que a performam como gesto de amor e vida, cientes de suas limitações, despreocupados da perfeição relegada aos especialistas. É assim a minha travessia dessa noite em breu, que não posso mais chamar só de minha, porque ela própria atravessada de nomes: Irineu, Gustavo, Maria, Bernes, Bogoslovsky e quem mais. Espero apenas que dessa parceria venham outras.
Guilherme Gontijo Flores é poeta, tradutor e professor na UFPR. Autor de carvão :: capim e História de Joia, traduziu Robert Burton, Rilke, Propércio, Safo, entre outros. É coeditor da revista-blog escamandro e membro da Pecora Loca. Recebeu os prêmios APCA e Jabuti por sua tradução de ""A anatomia da melancolia", de Robert Burton.
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