Em 2018, sob a direção de Andrêi Djunkóvski, foi lançada, inicialmente na plataforma de internet Start, um dos primeiros projetos de tal categoria na Rússia, a série “Melhor do que os humanos” (em russo, “Lutche tchem liudi”, na plataforma Netflix, “Better than us”). Mas melhor em que sentido? E sobre que “nós” ou “humanos” a série se refere?
Karel Čapek, que escreveu a peça R. U. R., em 1920, é considerado por muitos o inventor da expressão “robô”. As máquinas descritas na peça por Čapek deixavam de ser sistemas de automação disformes e passavam a ser organismos biológicos artificiais que podiam ser confundidos com humanos. Em tcheco, “robota” significa trabalho forçado e deriva da palavra “rab”, que tem o mesmo radical do russo e, em português, significa "escravo".
A presença dos robôs indicava uma grande dualidade. Por um lado, era positivo: o robô estaria pronto para realizar qualquer trabalho, melhor e mais rápido do que o humano. Por outro, era negativo: o humano não teria mais como superar a energia, a força e a eficiência dos robôs, que passariam então a superá-lo em todas as relações, exceto em questões relacionadas a emoções e sentimentos.
Em 1942, Issac Asimov cria as famosas “Leis da Robótica”, que passariam a nortear a relação entre os humanos e suas máquinas: 1) um robô não pode ferir um humano ou permitir que um humano sofra algum mal; 2) os robôs devem obedecer às ordens dos humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a primeira lei; e 3) um robô deve proteger sua própria “vida”, sem com isso ferir a primeira e a segunda leis.
O próprio Asimov, no ano de 1977, ao escrever um de seus clássicos, “O homem bicentenário” eleva o robô, Andrew, a outro patamar, já com características humanas quanto aos sentimentos, emoções e vontades. Poderia, assim, a inteligência artificial fazer frente à inteligência humana, ou poderia o humano perder o controle sobre seus próprios robôs?
A maior discussão travada deixava de ser então sobre a simples presença ou não de robôs entre nós, mas os níveis de interação deles com os humanos, e a adequação às novas necessidades da humanidade.
Ainda no eco das inesquecíveis palavras do cineasta Andrêi Tarkóvski no clássico “Solaris”, de 1972, “O humano precisa do humano”, não poderia ser o robô uma companhia ideal, mediante tamanha decadência do conceito de humanidade entre os humanos? Afinal, dele não se busca apenas a inteligência artificial, mas sim um contato, mesmo que não “humano”, alguém com quem se possa interagir e com quem possamos ser nós mesmos, dividir nossas frustrações e nossos medos.
A série “Better than us” se coloca à margem do que poderíamos entender como uma obra de ficção científica, e lança em rota de colisão os dramas da humanidade. Ou seja, a série é sobre pessoas, e não especificamente sobre robôs. De maneira geral, o enredo reflete uma realidade universal, uma realidade alternativa de um futuro no qual existem robôs, porém, igualmente na qual os conflitos humanos se aprofundam e parecem chegar aos limites.
Arissa (Paulina Andréieva), criada como uma nova geração de robôs que pensam e são capazes de reagir por seus próprios instintos em determinadas situações, e que havia fugido de seus criadores, é encontrada por uma criança, Sonia (Vitalia Kornénko), cuja família vive uma intensa crise de relacionamento. Ao se aproximar da criança, Arissa passa a se dedicar a todas as atribuições do protocolo de uma mãe em seu conceito de família. Uma dessas atribuições é se aproximar do pai da criança, o cirurgião Geórgui Safrónov (Kirill Käro), em processo de separação de Alla (Olga Lomonóssova) a mãe.
Arissa tenta viver uma vida humana, mas é monitorada por seus criadores, que consideram o modelo um protótipo raro e exclusivo para aqueles que precisam que os robôs substituam os humanos em atividades muito mais complexas, tais como a educação dos filhos, e até mesmo nas relações afetivas e, por que não, nas sexuais.
A série mostra a grande falta de humanidade entre os humanos. Já Arissa, busca se humanizar. Em outras palavras, o robô acaba por incorporar alguns dos defeitos e vícios humanos para viver entre os homens e ser aceito. Arissa percebe que, para proteger sua família, suas qualidades e perfeição não são suficientes. Assim, ela precisa aprender a mentir, a enganar, sem ferir as leis da robótica, que bem se assemelham aos códigos de ética dos humanos. Seria um robô, ainda não corrompido pelo seu meio, capaz de mudar a psicologia humana e curar o humano de sua crise moral e ética, bem como de algumas de suas maiores doenças, como a falta de amor, a solidão e a ambição?
Edelcio Americo é doutor em Letras pelo Programa de Literatura e Cultura Russa da Universidade de São Paulo, tradutor, intérprete e professor de língua russa.
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