OPINIÃO | Por que não levar a 6ª e última temporada de ‘Vikings’ tão a sério

History Channel, 2019
Representação “histórica” ​​da Rus Kievana contém inúmeras falhas grotescas – mas tudo indica que os produtores da série fizeram isso de propósito.

Espectadores ao redor do mundo, inclusive na Rússia, estavam ansiosos pelo retorno da série ‘Vikings’ – e, enfim, chegou a hora esperada: em 5 de dezembro do ano passado, o FOX Premium 2 exibiu o primeiro episódio (aliás, duplo) da 6ª e última temporada. No entanto, depois do tão aguardado momento, fãs de diversas partes do mundo demonstraram visões conflitantes sobre a nova empreitada da série.

Por um lado, o programada continua sendo, assim como nas temporadas anteriores, produzido com perfeição: além dos já amados personagens, chegaram outros novos e interessantes, além das intrigas intensas e boas sequências de ação. Mas uma coisa chamou atenção sobretudo dos espectadores russos – o retrato absolutamente absurdo da Rus Kievana, o Estado que antecedeu a Rússia, Ucrânia e Bielorrússia.

Claro que é difícil esperar precisão histórica total de um seriado que fala sobre personagens semilendários de sagas escandinavas míticas. É por isso que alguns erros foram facilmente perdoados pelos fãs em troca de uma boa história. Engolimos, por exemplo, o fato de Rollo e Ragnar serem irmãos, de Sigurd ter sido morto por Ivar, e até mesmo os soldados de Wessex usarem capacetes do Renascimento italiano. Ops...

E não houve tantos erros críticos nas cinco primeiras temporadas da série. Porém, com a sexta temporada, as inconsistências se tornaram flagrantes demais para serem ignoradas – e todos elas ligadas ao outrora poderoso Estado da Rua Kievana.

Rus Kievana de ‘Vikings’ = Terra de Sempre Inverno de ‘GOT’

No final da 5ª temporada, Ivar perde a batalha por Kattegat para seus irmãos e foge. Ele então viaja ao longo da Rota da Seda, vê lugares incríveis, animais exóticos e pessoas incomuns, antes que suas peregrinações o levem a Rus Kievana. E é aí que o primeiro erro grotesco aparece.

Kiev parece estar passando por um período de inverno rigoroso, a região está coberta de neve e sofrendo com temperaturas congelantes. Tudo bem...até que a narrativa conduz os espectadores aos irmãos de Ivar em Kattegat, na Escandinávia, onde, ao mesmo tempo, não há neve alguma, e sim um outono bastante confortável.

Seria ótimo se os escritores analisassem o mapa para ver que, de fato, Kiev fica muito mais ao sul da Escandinávia, e geralmente tem invernos mais suaves. O que vemos retratado aqui é o eterno clichê de que é sempre inverno e neva na Rússia. Para completar o retrato estereotipado e defeituoso, só faltam os ursos...

Mongóis em vez de russos

Atenção! Quando você vê os guerreiros russos de Kiev pela primeira vez em ‘Vikings’, a vergonha é grande demais para suportar. Vestidos com armaduras orientais dos cavaleiros nômades cazares, pechenegues ou mongóis, eles realizam acrobacias sobre cavalos no estilo cossaco durante o ataque.

Quem já jogou Assassin’s Creed sabe como era a guarda pessoal do príncipe kievano (aplicando à realidade de ‘Vikings’, é claro). Guerreiros asiáticos vestidos todo de preto, apenas com os olhos visíveis. O príncipe Oleg, usando algo que parece um traje nacional tártaro ornamentado, não fica longe dessa representação errônea.

Na realidade, era difícil distinguir um guerreiro na Escandinávia dos do Principado de Kiev naquela época. Os guerreiros da Rus Kievana eram, de fato, nórdicos. Os varegues (como os vikings eram chamados na Europa Oriental) invadiram as terras eslavas, estabeleceram-se ali, atuaram como mercenários e foram então eleitos como governantes – assim como Oleg, o Profeta, interpretado pelo ator Danila Kozlovsky.

Russos e o balão de ar quente na Idade Média

É de conhecimento geral que o balão de ar quente foi inventado no início do século 18 pelos irmãos Montgolfier. Mas isso não aplica ao universo de ‘Vikings’.

Na série, é possível ver um balão sobrevoando Kiev calmamente, e Oleg e Ivar chegam a passear nele. E não seria surpresa alguma se esse mesmo balão também servisse como posto de observação para detectar alvos para artilharia eslava.

Brincando com fatos históricos

Como uma obra de ficção inspirada em eventos históricos, ‘Vikings’ frequentemente distorce descaradamente os fatos. A Rus Kievana durante o governo de Oleg, do final do século 9 ao início do 10, era um país pagão. O cristianismo só chegou à região 80 anos após sua morte. Por isso, é provável que Oleg ficaria muito surpreso, se não P da vida, se soubesse que foi transformado em cristão pelos escritores do seriado.

Outra imprecisão marcante é o conflito com os príncipes Askold e Dir, que, segundo ‘Vikings’, governavam a cidade de Novgorod, no norte. No entanto, era Oleg quem governava Novgorod e depois foi a Kiev, matando os príncipes e capturando a cidade.

Além de tudo isso, há outra falha em relação a Novgorod. Na série, essa cidade enorme é mostrada como um mero pequeno posto avançado escondido nas florestas ...

Conquistar a Escandinávia? A troco de quê?

Uma coisa é brincar com fatos históricos em prol de uma boa história; outra é agir contra a lógica. O príncipe Oleg diz a Ivar que havia realizado campanhas militares contra Constantinopla (o que é historicamente correto), mas depois disso, anuncia o seu novo plano “brilhante” – trocar as intenções geopolíticas no Oriente (Bizâncio) para o Ocidente (Escandinávia). De acordo com o governante de Kiev, a ideia seria capturar as terras de seus antepassados. Eis que surge a pergunta: por quê?

Por que, em vez de terras ricas e quentes da costa do mar Negro, alguém iria para os territórios frios, pedregosos e infrutíferos do norte? Não havia nada a ganhar ali, apenas fome em massa e se tornar presa dos homens do norte acostumados ao frio. Os vikings chegaram a conquistar a ensolarada ilha de Sicília para nunca mais voltar à sua terra natal. Eles ririam se lhes dissessem que alguém queria capturar suas terras.

Duas razões para a farofada

Tais erros gritantes ofendem os olhos. Mas por que eles foram feitos? É difícil acreditar que os criadores da série não tenham conseguido obter informações corretas. Certamente poderiam contratar especialistas, ou até pedir o conselho de Danila Kozlovsky e de Katheryn Winnick (Lagertha), que é de origem ucraniana.

Parece haver duas explicações para isso. A primeira é política. A Rus (leia “Rússia” aqui) é mostrada como um país invernal e cruel no Oriente, completamente diferente da civilização ocidental. Os russos são retratados como implacáveis ​​por natureza. Basta olhar para o príncipe Oleg. Ele gosta de torturar as pessoas e literalmente as rasgar ao meio. O espectador acompanha os russos em ‘Vikings’, mas vê, na realidade, hordas mongóis, um perigo do qual se deve ter medo. Uma imagem na “guerra de propaganda” de Hollywood (e neste caso em particular, de cineastas canadenses e irlandeses), que acabará memorizada no subconsciente do público.

A segunda explicação não tem nada ver com algum plano mirabolante do Ocidente. A imagem da Rus Kievana foi provavelmente alterada apenas para tornar a temporada final mais interessante. Por cinco temporadas, vimos como os vikings lutaram contra inimigos bastante semelhantes: saxões e francos (que parecem gêmeos) e outros rivais nórdicos. Portanto, fazer com que os novos adversários – os habitantes da Rus – se parecessem com os próprios vikings (como de fato eram) não traria nada de novo ao seriado; pelo contrário, poderia ficar chato, monótono e repetitivo.

Cabe lembrar que a 6ª temporada conta com 20 capítulos, divididos em 2 partes. Até então foram exibidos os 10 primeiros, e a previsão é que a segunda parte seja lançada no final de 2020, provavelmente em novembro. Isto é, vem mais besteirol pela frente.

Boris Egorov, historiador e especialista em história da Escandinávia

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