Ponto de teatro russa fala sobre sua profissão, ameaçada de extinção

Cultura
ALEKSANDRA GÚZEVA
Hoje, a maioria dos teatros já deixou de usar os pontos, ou seja, aqueles profissionais que ficam escondidos dando deixas aos atores caso eles esqueçam de partes do texto. Mas o Teatro Máli, em Moscou, preza essa tradição e considera os pontos indispensáveis ao fazer teatral.

Aos 70 anos de idade, a russa Larissa Andrêieva desliza sem parar seus longos dedos de unhas feitas pelo texto. Ela tem uma profissão rara: é ponto no Teatro Máli, um dos mais importantes da capital russa.

Você já viu ou ouviu falar no ponto? Alguém poderá imaginar imediatamente uma pessoa agachada no poço do palco, curvada sobre um caderno, só com a cabeça para fora, escondida dos espectadores pela "concha" do poço.

"Toda a poeira entra pelo ‘olho mágico’ do poço, como eu chamo, e eu tenho uma alergia terrível a poeira. Não aguento nem cinco minutos, começo a tossir e a espirrar. Certa vez, alguém na primeira fila disse ‘saúde!’ em um desses espirros e eu quase tive um treco", diz Andrêieva.

É por isso que ela parou de usar o poço do ponto já há muito tempo. Agora, ela trabalha nos bastidores, sentada atrás do palco do lado esquerdo ou da direito, dependendo do cenário. Uma mesinha com luminária está sempre pronta para a sua chegada, assim como uma xícara de chá, já que sua garganta parece estar seca o tempo inteiro.

Hoje, Andrêieva chegou ao teatro só uma hora e meia antes do início do espetáculo. “O jardim das cerejeiras” já está no repertório do teatro há muitos anos, por isso não é preciso ensaiar demoradamente.

Andrêieva trabalha na produção desde sua estreia, por isso sabe e mais um pouco: quem diz o quê, quando e até por que um silêncio repentino toma o palco. "Eles podem ficar em silêncio por cinco minutos inteirinhos, e eu também ficarei em silêncio porque sei que é parte do espetáculo", diz.

Do palco para os bastidores

Andrêieva virou ponto quase por acidente. Na juventude, ela trabalhou como atriz em um teatro em Kurgan, cidade na Rússia Central para lá dos Urais e quase na fronteira com o Cazaquistão. Certa vez, os dois pontos de seu teatro ficaram doentes e os atores precisaram de ajuda. Um deles sugeriu então a Andrêieva que ela experimentasse a mão na profissão, dizendo que isso "poderia ser útil na vida". Foi assim que a jovem atriz se tornou ponto de meio período.

Em Kurgan, Andrêieva fez muitos papéis e recebeu o título de Artista de Mérito da Rússia. Mas, em 2003, já aos 54 anos de idade, ela se mudou para Moscou, onde buscava emprego. Por acaso, ela acabou no Teatro Máli, que estava precisando de um ponto.

No começo, foi muito difícil para Larissa deixar a carreira de atriz. Ela reluta em falar sobre a época, que lhe foi emocionalmente dura. "O tempo cura todas as coisas, mas, ainda agora, se me pedissem para me unir à trupe atuando, eu nunca aceitaria", diz Andrêieva.

Profissão em extinção

"Minha profissão não está só morrendo: ela já morreu", diz Andrêieva. O Teatro Máli é um dos dois teatros dramáticos de Moscou que ainda usam pontos. Nos estágios finais de preparação de uma produção, os diretores de palco de alguns teatros fazem os ensaios com atores. Mas, em outros, os atores têm que se virar sozinhos. Contraditoriamente, porém, nos teatros de ópera, entre eles, o Bolshoi, a profissão de ponto está em alta.

A arte de do ponto não é ensinada na Rússia – o trabalho é totalmente intuitivo. No Máli se ensina quem quer entrar na profissão. Recentemente, por exemplo, uma jovem começou um estágio no teatro. E, boas notícias: Larissa acha que a moça tem faro para o trabalho!

Atualmente, há cinco pontos trabalhando no Teatro Máli. É claro que os atores podem usar os pontos por meio de fones de ouvido ou outras tecnologia. Mas o trabalho com pontos é importante também psicologicamente.

"No Máli todo mundo sabe que, aconteça o que acontecer, o ponto sempre estará ali. Quando saímos em turnê, a primeira coisa que eles perguntam é se eu vou estar sentada à esquerda ou à direita do palco", conta Andrêieva. Quando há um palco novo com acústica desconhecida, é na opinião do ponto que todos confiam.

Psicólogo de atores

O texto de trabalho do ponto parece uma partitura musical complexa, com dezenas de marcas que só o profissional entende. Trechos do texto são riscados – é aquilo que o diretor decidiu cortar. Outros têm sentenças sublinhadas -  que o ator insiste em esquecer. Um ponto de exclamação significa que é preciso dar atenção especial àquele trecho. Um “tique” é onde o ator fará uma pausa. Três significam uma longa pausa.

Os atores não precisam virar a cabeça em várias direções buscando a mesa de trabalho de Andrêieva no bastidor. Ela sabe muito bem quem precisa de ajuda e em que momento. A palavra russa para "ponto" (“sufliôr”) vem do francês “souffler”, que significa "respirar" ou "soprar". Assim, um ponto é um soprador, que sopra levemente, mas com precisão, as palavras no ouvido do ator. Só que os espectadores nem imaginam que exista alguém “soprando”.

Às vezes, os avisos de Andrêieva são direcionados não só ao texto, mas também à ação no palco: "vá para a direita", "abaixe" ou "devolva". Os atores afirmam já conseguir ler nos lábios o que ela diz.

Andrêieva conta "a única piada que existe sobre pontos": “É noite de abertura, e o ator principal vai até o ponto antes do início do espetáculo e diz: ‘Hoje, pode relaxar, não precisa me avisar, sei tudo’. Toca o primeiro sinal e o mesmo ator vai até o ponto e diz: ‘Sabe, é melhor você ficar de olho em mim’. Toca o segundo. ‘Sabe aquele monólogo, lembra daquele? Fique de olho em mim’. Finalmente, toca o terceiro sinal para o início da peça. ‘Diga-me todas as palavra, uma a uma, eu te imploro!’”.

Andrêieva não se cansa de repetir o mesmo roteiro um dia após o outro porque nenhuma apresentação é como a anterior - cada uma delas é totalmente nova. Na verdade, às vezes ela até fica maravilhada com uma nova interpretação ou uma nuance emocional que o ator inventa.

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