Não é de hoje que o quebra-cabeça literário russo do século 20 vem se tornando mais complexo por essas bandas. De Sologúb e Dovlátov, editados pela Kalinka, à ficção científica “Piquenique na estrada”, dos irmãos Strugátski, publicada pela Aleph, nomes pouco ou nunca antes traduzidos por aqui vem aparecendo nos catálogos de diferentes editoras, ampliando a esfera russa para além dos já bem estabelecidos clássicos do século 20.
Editada pela Carambaia, que recentemente publicou também obras de Vladímir Koroliênko e Mikhail Bulgákov, surge agora, em tradução de Irineu Franco Perpétuo, a novela “Lasca” (1923), de Vladímir Zazúbrin (1895-1937). Trata-se de um texto que também poderia se sentir confortável no ciclo “Narrativas da revolução”, da Editora 34, que reúne obras escritas nos primeiros anos do regime soviético e que lidam, cada uma à sua maneira, com as transformações no país.
Zazúbrin se tornou conhecido como um talento literário em ascensão após a publicação, em 1921, de “Dois mundos”, romance sobre a Guerra Civil descrito por Lênin como "um livro terrível, um livro necessário". O sucesso do trabalho o empurra de vez à literatura: depois de passagens tanto pelas forças dos Brancos quanto pelo Exército Vermelho - ao qual havia se juntado em outubro de 1919 -, Zazúbrin dá baixa do serviço militar em 1922 e, no ano seguinte, torna-se presidente e secretário da revista literária “Luzes da Sibéria”. O cargo, porém, não impediu que “Lasca”, escrita nesse mesmo ano e submetida à publicação, fosse rejeitada, permanecendo inédita por décadas.
A novela só seria editada na Rússia nos anos finais do regime soviético, sendo mais uma das diversas obras emergidas dos arquivos nesse período. Pouco após essa primeira publicação, o texto foi adaptado para o cinema em 1992 por Aleksándr Rogôjkin, em uma co-produção entre França e Rússia que receberia o título de “O tchekista” - nome pelo qual a obra de Zazúbrin ficou conhecida em algumas traduções feitas à época.
Horrores do dedo-durismo
“Lasca” é uma novela em turbilhão. Seus dez capítulos se articulam como pequenos núcleos temáticos, cenas relativamente independentes, ainda que cronológicas, que apresentam o cotidiano e as reflexões de Andrêi Srúbov, comandante de uma Gubtcheká - acrônimo de Comissão Provincial Extraordinária de Combate à Contrarrevolução e Sabotagem -, órgão regional da primeira polícia secreta do regime soviético, responsável por investigar, identificar, julgar e, não raro, executar cidadãos suspeitos de agirem contra os interesses da Revolução.
Através de Srúbov, acompanhamos sessões de execução; a triagem de bilhetes acusatórios enviados por cidadãos interessados em entregar inimigos, conhecidos, vizinhos ou até familiares; a cooptação de informantes; interrogatórios, prisões e até eventuais perdões. A cada etapa, emergem novas facetas da degradação física e moral imposta pelo cargo ao protagonista e a seus colegas, num acúmulo febril de dúvidas que se anuncia de maneira torrencial já ao final do primeiro capítulo – talvez o mais potente de toda a novela, condensando tanto as preocupações centrais de Zazúbrin quanto seus procedimentos estéticos.
Nessa primeira cena, acompanhamos passo a passo uma noite de execuções na Gubtcheká: de cinco em cinco, os prisioneiros são levados ao porão; alguns se recusam a se despir, outros apelam a uma última declaração potencialmente salvadora, outros ainda escarnecem dos agentes impassíveis, e todos encontram o mesmo fim: um tiro na nuca.
Mas, apesar da profusão de detalhes descrevendo as nuances de comportamento de cada condenado e de cada agente, não estamos diante de um realismo comedido. Adepto de comparações e descrições inusitadas e potentes como as de Isaac Bábel, porém sem a concisão por vezes cruel (e certeira) deste, Zazúbrin escreve de maneira sensorial, sinestésica, expressionista, grotesca: as paredes tremem, a terra respira e geme, o sangue jorra e se transmuta em lava, a fumaça acinzentada e azulada dos cigarros embaça a visão de Srúbov, fezes se espalham pelo chão dos porões e ruídos metálicos atordoam o protagonista:
"Com um tinido retumbante, com um crepitar, brocas automáticas verrumavam os crânios. Esguichava serragem vermelha chamuscada. Voava a graxa lubrificante dos coágulos ensanguentados do cérebro [...] O porão chamejava vapor de sangue, depois suor humano cáustico, fezes. E névoa, névoa, fumaça. As lâmpadas do teto, com esforço, arregalavam os olhos ardentes e cegos. As paredes supuravam uma perspiração fria. Em febre, o chão de terra se debatia. Sob os pés, uma galantina rubro-amarela, pegajosa, fétida. O ar pesava como chumbo. Difícil respirar. Uma fábrica.
– Rrr-ah-rrr-rrr-ah!"
Como afirma em certo momento um comandante a Srúbov, o sistema de perseguição e execução em série no prédio branco de pedra de três andares da Gubtcheká "é uma máquina", "uma fábrica mecânica". E essa fábrica também ganha vida em descrições que trazem à mente o Moloch fabril do filme “Metrópolis”(1927), de Fritz Lang: o prédio fitava a cidade "com os olhos famintos, brilhantes e quadrangulares das janelas", arreganhava os "dentes congelados dos portões", mastigando "braçadadas de presos, engolia-os com as goelas de pedra dos porões, digeria-os na barriga de pedra e, como escarro, baba, suor e excrementos, cuspia-os, escarrava-os, expelia-os na rua".
Vermelho Rússia
A edição da Carambaia traz um vermelho intenso na capa e nas bordas das páginas que, emoldurado pelo preto da folha de rosto, cria uma composição consoante com o furor das cores da obra. Pois, afora a escatologia presente nas visões e sonhos do protagonista Srúbov, a obsessão cromática de Zazúbrin está presente a todo momento, pontuando inclusive cenas mais sutis, igualmente interessantes - e, politicamente, no mínimo, ambíguas.
Em dado momento, por exemplo, Srúbov reflete sobre o vermelho da bandeira soviética, considerando-o um erro: faltaria nela o cinza do "suor salgado dos trabalhadores cotidianos, a fome, a miséria, o chamado ao trabalho". Ou, talvez, ela devesse "ser feita toda em cinza. E, sobre o cinza, uma estrela vermelha. Para que ninguém se enganasse, não criasse ilusões".
Outro momento notável ocorre em uma madrugada, após uma longa sessão de execuções. Exausto em seu escritório, Srúbov nota a linha pontilhada vermelha formada por seus passos e, logo em seguida, o branco da camisa de Karl Marx, no quadro na parede:
"– Camisa branca, camarada Marx, o diabo que o carregue.
Com raiva e dor, pegou a garrafa de álcool, o copo, e andou pesadamente até o sofá. 'Está constrangido, seu aristocrata. Pois tome.' Não tirou as botas de propósito. Esticou-se, com os saltos no braço do sofá. No revestimento azul-cinzento, lama, sangue e a umidade da neve. Deixou a garrafa de álcool e o copo ao lado, no chão. E tinha vontade de entrar de cabeça no rio, no mar, e lavar tudo, tudo. Já deitado, levou à boca meio copo de álcool ardente, puro. E, no cérebro, embriagado pela bebida, pelo estupor do porão, pelo cansaço, pelas noites de insônia, havia pensamentos quase bêbados, quase desconexos:
– Por que, precisamente, Marx está de camisa branca?"
Em cenas como essa, Srúbov reflete sobre a condição de párias dos tchekistas, "sanitizadores" que realizariam um trabalho sujo, "indispensável", mas do qual ninguém na sociedade gostaria de lembrar. A imenso custo pessoal, que se abateria também sobre suas famílias, os carrascos se submetem à total desumanização em nome d'Ela - a Revolução, descrita não como uma ideia, mas "um organismo vivo. Ela é uma grande mulher grávida. Ela é a mulher que acalenta seu bebê que está para nascer". E, como tal, o espectro "d'Ela" ronda Srúbov ao longo de toda a novela, transmutando-se a cada passo em imagens nem sempre muito alentadoras.
"Ela", aliás, é uma figura que surge também em “A verdade pálida”, outro trabalho escrito por Zazúbrin em 1923 e efetivamente publicado nesse mesmo ano. Nele, os dilemas morais da vida pós-revolução surgem por meio da trajetória de um ferreiro transformado em burocrata e injustamente acusado de corrupção. Mas não apenas o tema tratado é menos espinhoso do que em “Lasca”como, estilisticamente, trata-se de um texto muito mais "pálido", escrito em tintas menos carregadas de horror e sangue – o que talvez ajude a explicar a diferença no destino das duas obras.
Curiosamente, dá as caras por lá também, abrindo e encerrando o texto, a metáfora da "lasca" que nomeia a novela proibida, enunciada em “A verdade pálida” pela voz do beletrista Zúev, personagem que também atravessa um momento de dúvida:
"... A revolução é uma corrente poderosa, lamacenta, destrutiva e criadora. O homem é uma lasca. As pessoas são lascas. Mas por acaso o homem-lasca é o objetivo final? Revolução? Através do homem-lasca, através da poeira humana, ao preço de algumas lascas, às vezes, talvez, de também algumas vítimas desnecessárias, ao preço da poeira humana, rumo à maravilhosa humanidade futura!... Mas o que é isso? Dei agora de justificar a Revolução? E por acaso ela precisa de justificativas?"
Pistas da censura
No posfácio do volume da Carambaia, o tradutor Irineu Franco Perpétuo cita a existência de um texto introdutório, escrito ainda em 1923 por Valerian Pravdúkhin, para a primeira edição de “Lasca”, que nunca viu a luz do dia. É uma pena que a editora brasileira não tenha incluído esse prefácio original na íntegra como um apêndice, pois se trata de um documento que fornece pistas para compreendermos a censura à obra, ao mesmo tempo em que busca defendê-la de possíveis suspeitas quanto ao seu real alinhamento à causa revolucionária.
Pravdúkhin – que, assim como Zazúbrin, seria executado durante o terror stalinista –, defende a coragem do jovem autor em mostrar que há "algo comum a todos - o futuro oceano do comunismo, da sociedade sem classes, em nome da qual a revolução avança impiedosamente através dos cadáveres dos inimigos degenerados da revolução". Ele opõe “Lasca”e seu autor a Dostoiévski e Leonid Andrêiev, que teriam buscado, em “Gente pobre”e “Os sete enforcados”, “despertar em nossas almas uma pena desnecessária à vida (...), implementar o inútil ideal kantiano do valor intrínseco da existência de cada pessoa”.
Ironicamente soando como Zúev, o beletrista de “A verdade pálida”, Pravdúkhin prossegue em sua defesa do Terror Vermelho, afirmando que Zazúbrin, sendo um escritor comunista e não um opositor emigrado, teria encarado de forma honrada o desafio de nos apresentar um "herói nunca antes visto na história da humanidade", que "não suporta seu próprio feito heróico". E completa: "Mas o sentido de seu feito está claro, seus objetivos surgem vivamente, e, mais importante de tudo, o artista revela de maneira concreta aquilo que impede o homem de finalmente ultrapassar a fronteira que separa o velho mundo do novo".
Mas será mesmo que Zazúbrin e Srúbov, o protagonista de “Lasca”, estão assim tão seguros? A imagem final que resta d'Ela, a Revolução, aponta para algo diferente – e é nos receios surgidos diante do horror que reside a força da obra. Os censores, ao encará-la, parecem ter sido mais argutos: assim como acontece a Srúbov, a imagem que viram no espelho talvez tenha sido assustadora demais para permitir certezas inabaláveis.
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