5 motivos para conhecer o poeta russo Mandelstam

Vadim Nekrasov/Global Look Press, Getty Images
A última quinta-feira (14 de janeiro) marcou os 130 anos de nascimento do escritor, que morreu misteriosamente em um campo de trabalhos forçados no Extremo Oriente da Rússia. E eis por que ninguém deveria se esquecer dele!

Para se ter ideia da colossal influência de Óssip Mandelstam, basta ter em mente que cinco dos maiores músicos do país na atualidade (Oxxxymiron, Agutin, Lagutenko, Shortparis e Noize MC) fizeram um tributo escrevendo músicas com os versos do poeta acmeísta em homenagem a seus 130 anos de nascimento, celebrados nesta quinta-feira (14). Intitulado "Sakhrani moiu retch navsegda" (em tradução livre, "Guarde meu discurso para a eternidade"), o tributo estreou no portal "Medusa".

1. O último intelectual russo

Óssip Mandelstam (cujo sobrenome pronuncia-se "Mandelchtám", 1891-1938) era descendente de comerciantes judeus, nasceu em Varsóvia e, mais tarde, mudou-se para São Petersburgo, onde cursou o ensino médio em uma escola de prestígio, estudando depois na Sorbonne, na França, e na Universidade de Heidelberg.

Seus primeiros passos no mundo artístico se deram na associação com os poetas acmeístas (Anna Akhmátova e Nikolai Gumilióv). Ele era fascinado pela antiguidade e pelos poetas franceses Paul Verlaine, Charles Baudelaire e François Villon, e teve um breve romance com a poetisa Marina Tsvetáeva.

Para muitos intelectuais na Rússia contemporânea, a dupla de poetas “Mandelstam e [Joseph] Brodsky” ganhou status quase sagrado: ambos são apresentados quase como mártires cristãos que sofreram por seus versos. Um morreu nas mãos do governo e o outro foi forçado a emigrar.

Mas, se a biografia de Brodsky, que nasceu depois, foi bem-sucedida - ele recebeu o prêmio Nobel e teve reconhecimento mundo afora -, o não menos brilhante Mandelstam foi vítima da repressão e esquecido por muitos anos.

2. Autor dos mais famosos versos contra Stálin

Em 1933, no auge do culto à personalidade de Stalin, Mandelstam escreveu o poema "Vivemos sem sentir o chão nos pés” (no Brasil, o texto entrou na coletânea “Poesia russa moderna”, da editora Perspectiva), com críticas impensáveis a Stálin. Ali, ele chamava o “vójd” (líder) de "montanhista do Kremlin" e acusava o governo de não dar a devida atenção ao povo simples: "A dez passos não se ouve a nossa voz".

Ele também descreve o círculo de Stálin como uma "ralé" que apenas executa ordens.

Como se pode imaginar, o poema nunca foi publicado durante a vida de Mandelstam e por um longo tempo depois de sua morte. Era perigoso até mesmo escrevê-lo: Mandelstam o recitou a um círculo restrito de amigos, mas Borís Pasternak o chamou de suicida e pediu que ele não o repetisse para ninguém.

Nos arquivos de segurança do Estado restou apenas uma cópia do poema escrita pelo autor.

Mas Mandelstam estava pronto para as consequências mais terríveis, apesar de, incialmente, ter sido apenas mandado a Vorônej. O poeta foi preso em 1938 e morreu, no mesmo ano, em um campo de trabalhos forçados de trânsito no Extremo Oriente.

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O poema, porém, sobreviveu: ele foi publicado no Ocidente em 1963, no jornal “Mosti”, enviado pelo historiador literário Iulián Óksman. Foi graças a ele, aliás, que muitos versos inéditos dos poetas da Era de Prata chegaram aos dias atuais.

Assim se iniciou a glória de Mandelstam no Ocidente.

3. Um dos poetas mais significativos da Era de Prata

Atualmente, Mandelstam é considerado um dos poetas mais importantes do século 20, apesar de não ter sido sempre assim. Enquanto vivo, ele esteve à sombra de outros poetas da Era de Prata, principalmente Aleksandr Blok, segundo o historiador literário e biógrafo de Mandelstam, Oleg Lekmanov.

Depois disso, seus poemas foram proibidos por muitos anos, e o interesse quanto a ele ressurgiu apenas com a publicação de "Vivemos sem sentir o chão nos pés”.

Mas o interesse em Mandelstam foi incitado principalmente por dois livros de memórias escritos por sua esposa, Nadejda, e que foram publicados em 1970.

No Ocidente, a tiragem dos livros de Nadejda era maior que a de seus poemas. Nas memórias, ela descreve não só a vida do marido, mas também traça um retrato de muitos dos poetas contemporâneos dele.

4. Um dos poetas mais complexos do mundo

Pesquisadores ocidentais começaram a estudar Mandelstam com mais seriedade depois que uma coletânea sua foi publicada nos EUA. A partir daí, Kiril Taranovsky, linguista de origem russa e professor da Universidade de Harvard, criou o termo "subtexto".

Isto significa que a chave para as passagens incompreensíveis dos poemas de Mandelstam (assim como de Akhmátova) está nos textos de outros poetas - da antiguidade, franceses, Púchkin e seus contemporâneos e assim por diante. Relacionando os versos dele com estes outros textos, surgiriam novos significados.

Pesquisou-se muito a vida e obra de Mandelstam, mas ainda não existe um corpus acadêmico de sua obra e um livro separado sobre o poeta com memórias de seus contemporâneos, como é frequente na tradição russa.

A grandeza de Mandelstam, aliás, foi reconhecida até mesmo por Vladímir Nabôkov - que, como se sabe, desdenhava praticamente todo mundo.

5. Escreveu um dos melhores poemas de amor da história

Da dir. para esq. Anna Akhmátova, Óssip Mandelstam, Maria Petrovikh, Emil Mandelstam (pai de Óssip), Nadejda Mandelstam (mulher de Óssip) e Aleksandr Mandelstam (irmão de Óssip), em Moscou, entre 1933 e 1934.

A grande poeta Anna Akhmátova qualificou o poema “Mestra dos olhares culpados” (em russo “Masterítsa vinováthikh vzgliádov”), de 1934, como o “melhor poema de amor do século 20”.

O poema é, aliás, cheio daquilo que se convencionou chamar “subtexto”: encontram-se paralelos dele com histórias bíblicas de Maria e de peixes como símbolos de Cristo, além de contos de fadas orientais.

Mestra dos olhares culpados, dona

dos ombros pequenos! Tens domada

a perigosa índole masculina —

de ti não vem a naufragada-fala.

 

Nadam peixes inflando as guelras,

vermelhas barbatanas: pega-lhes, pronto!

Em silêncio dizem «o» com as bocas,

dá-lhes a comer o meio pão do corpo!

 

Não somos peixes vermelho-dourados,

nosso costume fraterno tem outras sinas:

no corpo quente, costelas magras e o brilho

húmido e inútil das pupilas.

 

Marcam o rumo fatal cílios-sementes

de papoila... Então por que me arrebata,

como a janíçaro, esta volátil, vermelha,

breve meia-lua humilde dos lábios?...

 

Não te zangues, turca adorada,

eu meto-me contigo no saco tenebroso,

engulo tuas palavras obscuras,

beberei por ti a água esconsa.

 

És socorro, Maria, de quem morre.

Há que adormecer, a morte prevenindo.

Aqui me fico, no limiar severo —

vai-te embora, vai, fica ainda...

 

Fevereiro de 1934

(Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)

Os versos tratam da poetisa e tradutora Maria Petrovikh, e apresentam dois personagens: uma mulher fraca e um homem forte. Apesar de qualificada como débil, porém, a mulher se apresenta subjugando o homem e até como seu carrasco, usando perfidamente sua atração carnal.

Neste sentido, os peixes, mencionados adiante no poema, ganham outra interpretação por alguns críticos literários: a de uma descrição metafórica do coito.

Os versos são de uma complexidade ímpar, o discurso se mistura, por vezes não se sabe quem narra, se ele ou ela. No Brasil, o poema ainda continua inédito. Em Portugal, sua tradução foi publicada pela Editora Relógio d’Água em 2001, na coletânea de Mandelstam “Fogo Errante”, traduzida por Nina Guerra e Filipe Guerra (os versos acima reproduzidos foram retirados deste tomo).

Se você sabe russo, assista à animação de Roman Liberov sobre Mandelstam “Guarde minha fala para sempre”.

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