Obras de "samizdat", feitas feitas e distribuídas de maneira clandestina para burlar a censura soviética.
Nkrita (CC BY-SA 4.0)Os romances “Doutor Jivago”, de Borís Pasternák, e “Arquipélago Gulag”, de Aleksándr Soljenítsin podem não ter um conteúdo muito parecido, mas uma coisa eles têm em comum: ambos só eram conhecidos pelo público soviético como "samizdat" na União Soviética.
Se hoje eles figuram no ranking dos 20 livros mais importantes do século passado, entre os anos 1960 e 1980 eles eram os proibidões das livrarias soviéticas, mas passavam de mão em mão em cópias caseiras apenas graças às cópias caseiras, tão desejadas por burlar o sistema de censura do país.
Na antiga União Soviética, o Glavit (Diretoria Geral de Proteção dos Segredos de Estado na Imprensa) era o órgão responsável pela censura e controlava tanto a literatura importada, como as publicações nacionais. Mas mesmo com a severa censura, o interesse por livros proibidos tornou o “samizdat” incrivelmente popular.
Obras publicadas pelos "samizdat" na era soviética em exibição. Foto: Museu Politécnico / 200.polymus.ru
Filha de um dissidente, Ekaterina Poleschuk conta que seu pai era um dos que produzia e distribuía literatura proibida, a chamada “samizdat”. Apesar de significar, ao pé da letra, “autopublicação”, os esforços de muitos dissidentes que não necessariamente escreviam estavam envolvidos na produção física desses livros.
“Meu pai e seus amigos distribuíam os ‘samizdat’, que conseguiam, provavelmente, vindos do exterior. Foi assim que lemos [Vladímir] Bukóvski, [Borís] Solonovitch, o ‘Ivan Tchonkin’ de Vladímir Voinovitch... Eu sempre me lembro do cheiro de cola fervendo no nosso fogão. Ele fazia tudo, até a capa”, conta Ekaterina.
A novela “A vida e as extraordinárias aventuras do soldado Ivan Tchonkin”, de Voinovitch (1932-) só foi publicada em 1988, mas os leitores mais astutos já conheciam seu conteúdo muito antes, graças aos esforços de gente como o pai de Ekaterina.
“Uma tarde, o papai trazia as páginas de ‘Ivan Tchonkin’ para fazer o livro, colocou na sua mochila e foi para o trabalho. No caminho, um policial o abordou e pediu seu documento, que ele não trazia consigo. Ele o levou à delegacia e revistou sua mochila. Meu pai ficou a noite inteira sentado triste na delegacia, imaginando o pior, enquanto o policial lia as páginas. De manhã, o policial suspirou, colocou as páginas na mochila, cumprimentou meu pai e lhe desejou sucesso, advertindo-o para que fosse mais cuidadoso”, diz.
O julgamento de Iúli Daniel (esq.) e Andrêi Sniavski (dir.), que tiveram seus pseudônimos revelados na URSS após sua obra ser distribuída em 'samizdat' vinda do exterior. / Foto de arquivo
Métodos de copiar
Os “samizdat” eram cópias feitas, geralmente, a mão ou datilografadas, e o papel carbono facilitava essa produção. Nas cópias a mão, usavam-se canetas esferográficas e papel jornal. Com o papel carbono, era possível produzir três cópias legíveis a mão por vez e até cinco com a máquina de escrever.
Nos anos 1970, também algumas cópias também passaram a ser ´produzidas com impressoras e máquinas de fotocópia.
Discos de LP, por sua vez, eram copiados com fonógrafos caseiros em velhas chapas de raio-x.
Degelo gelado
É paradoxal que até o famigerado discurso secreto de Nikita Khruschov no 20° Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que pôs fim ao culto à personalidade de Stálin e iniciou o chamado “degelo”, foi impresso na íntegra apenas por “samizdat”, já que os jornais soviéticos só traziam partes dele.
Além disso, os dissidentes que queriam chamar a atenção para assuntos políticos também faziam uso do “samizdat”. A revista mais famosa desse gênero foi a “Crônica dos Acontecimentos Atuais” (Хроника текущих событий), que foi publicada intermitentemente por 15 anos. Nesse período, mais de metade dos editores da revista foram condenados e enviados ao exílio.
Havia também os “tamizdat”, ou “publicado lá”. Essas obras eram enviadas ao exterior para impressão e depois voltavam à URSS para distribuição.
Um dos casos de "tamizdat" que ganhou maior repercussão foi o julgamento dos escritores Andrêi Siniavski e Iúli Daniel, cujas obras eram publicadas no exterior sob pseudônimos que acabaram revelados na terra natal em meados dos anos 1960.
Os dois foram condenados com base no artigo n° 70 do Código Criminal de então “Sobre agitação e propaganda antissoviética”, que era frequentemente aplicado contra os distribuidores de “samizdat”, mas foram libertados depois.
Entre 1956 e 1987, mais de 8 mil pessoas foram condenadas com base nesse artigo e no n° 190-1, “Sobre a disseminação de invenções falsas difamando o sistema soviético”.
Cultura pura
Mesmo obras não consideradas como políticas viam apenas no “samizdat” uma forma de ganhar público.
Foi assim que se publicaram na União Soviética, por exemplo, poetas da Era de Prata , que não ganhavam novas edições e já não eram encontrados nas livrarias do país.
“Publicamos a [Marina] Tsvetáeiva a mão, colávamos as páginas e dávamos para os outros”, lembra Mikhail Sereguin.
Até mesmo notas musicais eram distribuídas por “samizdat”, copiadas a mão. “A gente fazia as pautas musicais com uma máquina de escrever e escrevia as notas à mão. Aí, copiávamos as páginas e as costurávamos", conta.
A tradição continuou ao longo dos anos 1980, quando Bulgákov, Tolkien, Akhmátova e Vissótski eram distribuídos dessa maneira, e só deixou de ser necessária para burlar a censura nos anos 1990, com o fim da União Soviética.
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