O escritor russo que inspirou Orwell e Huxley

Cultura
YOLANDA DELGADO
A vida do escritor russo Evguêni Zamiátin sofreu uma reviravolta depois que ele passou dois anos na Inglaterra como engenheiro naval, construindo um dos primeiros quebra-gelos soviéticos. De volta para casa, o autor de ‘Nós’ foi apelidado de ‘inglês’, opôs-se abertamente a Lênin, correspondeu-se com Stálin e foi um dos primeiros dissidentes da Rússia Soviética.

O mundo todo conhece Evguêni Zamiátin como o autor de “Nós”, marco da literatura distópica do século 20 que apresenta um mundo aparentemente ideal em que o Estado Único suprimiu a liberdade em nome da felicidade.

A obra “1984”, de George Orwell, assim como “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, foram altamente inspiradas em “Nós”. Mas, muito antes de escrever “Nós”, o próprio Zamiátin foi influenciado por escritores britânicos que traduziu e pelo país.

Difícil quebrar o gelo

Nascido em 1884, em Lebedyan, província de Tambov, filho de um padre ortodoxo e uma pianista, Evguêni Zamiátin tinha visível talento para escrever e uma clara inclinação à matemática – motivo pelo qual ele, mais tarde, disse ter escolhido a segunda como sua carreira.

Zamiátin se matriculou no departamento de construção naval da Universidade Politécnica de São Petersburgo, onde mostrou sua tendência não conformista. Ele passou alguns meses na prisão, em 1905, por “agitação política”.

“Se eu tenho alguma improtância na literatura russa, devo isto totalmente à polícia secreta de São Petersburgo", escreveria ele mais tarde.

Apesar de seus problemas iniciais com a lei, Zamiátin começou a trabalhar como engenheiro e foi enviado para Newcastle, em 1916, para supervisionar a construção de quebra-gelos para o governo russo.

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Mas, quando os navios chegaram realmente à Rússia, eles já pertenciam a um novo governo, o dos bolcheviques, e assim foram renomeados.

Assim, em uma ironia do destino, Zamiátin, um dos primeiros críticos do regime soviético, projetou os primeiros quebra-gelos soviéticos, que foram intitulados “Lênin”, “Krasin”(em homenagem ao comissário soviético) etc.

Os 18 meses que ele passou na Inglaterra foram um período melancólico. Em cartas à mulher, Liudmila Ussova, Zamiátin reclamava que ele se comunicava com dificuldades com os moradores locais devido à barreira da língua, que a comida lhe fazia mal ao estômago e que tinha uma dor de cabeça permanente.

Isto para não falar nos constantes bombardeios alemães, já que a Primeira Guerra Mundial estava em seu auge.

“Muitas vezes, à noite, enquanto eu dirigia para casa vindo da fábrica em meu minúsculo Renault, era recebido por uma cidade escura e cega que havia apagado todas as luzes - isso significava que os zepelins alemães estavam em algum lugar próximo e as bombas logo começariam a desabar”, escreveu Zamiátin em sua autobiografia.

“À noite, em casa, eu ouvia o som das explosões - algumas muito distantes, outras, mais próximas -, verificando os projetos do ‘Lênin’ e escrevendo meu romance sobre os ingleses, ‘Ostrovitiane’ [publicado em inglês sob o título ‘The Islanders’]. Como dizem, tanto o romance quanto o quebra-gelo se saíram muito bem.”

Traído pela revolução

O período que Zamiátin passou na Inglaterra terminou abruptamente em 1917, quando ele descobriu que uma revolução ocorria na Rússia. Apesar de ter retornado a São Petersburgo a tempo da Revolução de Outubro, ele descreveu sua ausência na Revolução de Fevereiro como “nunca se apaixonar e, depois, acordar uma manhã e já casado há 10 anos ou mais”.

Os dois anos de Zamiátin na Inglaterra o influenciaram demais. Ele se vestia seguindo a moda europeia, com uma elegância e simplicidade de dândi, e falava com polidez.

Essas características, bastante marcantes para um homem nascido no interior do país, lhe renderam o apelido de “inglês” entre os amigos russos. Ele chegou a um nível de proficiência com a língua que lhe permitiu trabalhar como editor e tradutor de autores estrangeiros como H. G. Wells, Jack London e Sheridan para diversas editoras.

Inicialmente, Zamiátin tinha esperança de que a revolução fosse o início de uma nova ordem social na Rússia. Mas suas esperanças logo foram frustradas. Ele culpava Lêin por adaptar a doutrina britânica do Taylorismo - teoria gerencial que visava aumentar a produtividade dos trabalhadores por meio de uma análise rigorosa dos processos de trabalho.

Zamiátin acusava Lênin de tentar transformar os trabalhadores socialistas em máquinas vivas, e acreditava que o líder da revolução tinha traído os valores desta.

O escritor foi ainda mais longe ao publicar artigos condenando abertamente os massacres de trabalhadores que discordavam da ortodoxia oficial e expondo a constante repressão da Cheka aos camponeses.

Primeiro dissidente

Em 1921, o manuscrito de “Nós” foi rejeitado pelos censores. Naquele mesmo ano - talvez como reação à proibição de seu romance - Zamiátin publicou “Iá boiús” (em tradução livre, “Eu temo”), ensaio que marcou o fim de qualquer carreira como escritor oficial que ele poderia ter tido na Rússia.

Ali, ele escreveu que “a verdadeira literatura só pode existir onde é criada, e não por funcionários diligentes e confiáveis, mas por loucos, eremitas, hereges, sonhadores, rebeldes e céticos”.

Com a revolução engatinhando, em seus apenas quatro anos de idade naquele momento, Zamiátin esteve, certamente, entre seus primeiros dissidentes.

O escritor acabou conseguindo com que o manuscrito de “Nós” fosse contrabandeado para Nova York, onde foi publicado em 1924. As autoridades soviéticas ficaram indignadas e Zamiátin foi condenado ao ostracismo.

O escritor foi demonizado na imprensa, adicionado à lista negra de publicações e expulso da União dos Escritores Soviéticos. Muitos outros teriam ficado deprimidos com isto.Mas Zamiátin teve a coragem de escrever para Stálin, em 1931, solicitando permissão para deixar a Rússia.

Em sua carta, Zamiátin não pedia desculpas e explicava que não poder escrever era o mesmo que “uma sentença de morte” – isto em um país onde os expurgos políticos já haviam começado, ou seja, muito ousado.

Com a fascinante carta, Stálin atendeu ao pedido do escritor. Zamiátin foi uma das raras figuras públicas autorizadas a deixar a União Soviética na década de 1930, e seguiu direto a Paris, onde encontrou trabalho como roteirista.

Em uma reviravolta fora do comum, Zamiátin escreveu novamente a Stálin em 1934, desta vez, pedindo permissão para voltar à União dos Escritores Soviéticos. Ele não foi aceito pela sociedade dos imigrantes russos na França e estava em situação financeira difícil.

Assim, a adesão ao sindicato permitiria que ele recebesse pagamentos e royalties que o ajudariam neste momento difícil. Em um acontecimento sem precedentes, Stálin concordou, e Zamiátin foi o primeiro e único escritor emigrado a reconquistar o direito de se associar à organização oficial.

No ano seguinte, ele participou do evento antifascista intitulado Congresso Internacional para a Defesa da Cultura, onde foi membro da delegação soviética ao lado de Aleksêi Tolstói e Borís Pasternak.

Evguêni Zamiátin morreu em Paris, em 1937, aos 56 anos de idade. Ele foi enterrado no cemitério de Thiais e sua morte passou despercebida, sem ser anunciada em sua terra natal.

Ele morreu mais de meio século antes de “Nós” ser, finalmente, publicado na União Soviética, em 1988, quando o regime já começava a cair.

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