Como os russos enfrentam a morte

Cultura
GEORGUI MANÁEV
A maneira russa de lidar com a morte mudou desde o início do século 20. Paradoxalmente, no entanto, os russos estão redescobrindo e reinventando tradições e hábitos fúnebres.

Recentemente, uma celebração do Dia dos Mortos mexicano foi proibida na Praça Vermelha, em Moscou, por motivos não evidentes. A celebração com atores disfarçados de personagens do folclore mexicano estava planejada para começar no Gostinyi Dvor [edifício não muito longe do Kremlin] e marchar rumo à Praça Vermelha. Depois de horas de espera, a festa inteira permaneceu dentro do prédio, e os funcionários do Gostinyi Dvor justificaram que haviam recebido um pedido do Serviço de Segurança do Kremlin para que a celebração fosse interna. Mas por que?

Quem poderia ficar ofendido esse este evento colorido, que está incluído na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO? Talvez, a múmia de Vladímir Lênin no mausoléu? Ou os “moradores’ da necrópole no muro do Kremlin, entre eles Górki e Gagárin? A resposta é, muito provavelmente, a seguinte: os russos ainda não estão prontos para aceitar a morte como um evento comum cotidiano, embora já tenham feito isso antes.

A maioria das pessoas do campo (mesmo as não religiosas), bem como as pessoas religiosas (inclusive de vilas e cidades) têm uma atitude rigorosa em relação à morte, considerando-a parte da vida.

Luto para sobrevivência

Nas décadas de 1920 e 1930, o crematório no Cemitério Donskoe era muito popular entre os moscovitas, e ali eram organizadas visitas guiadas durante as quais as pessoas assistiam à incineração de cadáveres. 

A morte na sociedade russa tradicional (ainda em torno durante as primeiras décadas do século 20) era mais comum. Altas taxas de mortalidade, tanto entre crianças como adultos, decorriam da falta de cuidados de saúde, epidemias e criminalidade.

Qualquer aldeão tinha estado em vários funerais, com muitos amigos e parentes falecidos, e sabiam como acalmar a dor – muitas no campo ainda o fazem.

“Numa aldeia, você se aproxima de um homem e diz: ‘Eu entendo tudo. Deixe-me cozinhar mingau para o velório. O quê, o mingau de milho já está cozido? Então eu farei o trigo-sarraceno.’ E isso é suficiente, porque é o começo da comunicação”, diz Anna Sokolova, uma antropóloga russa especializada em estudos da morte.

Segundo Sokolova, a maioria dos russos ainda tem um comportamento ruim quando fala sobre a morte. “Se um amigo próximo ou parente de uma pessoa morrer, ela reluta em falar sobre isso no trabalho. É mantido debaixo do tapete, e isso é muito ruim, porque a comunicação sobre a morte é psicoterapia”, explica.

Da mesma forma, os preparativos para o velório, como as refeições específicas para a ocasião e luto, também fazem parte do processo.

“As pessoas das aldeias e nas cidadezinhas sabem indicar o luto: um lenço preto ou uma braçadeira. Eles sinalizam um certo modo de comunicação que deve ser usado.”

Ao longo de todo o século 20, a Rússia sofreu diversos eventos trágicos que levaram a morte em grande escala: a Primeira Guerra Mundial, a Guerra Civil, a fome, os expurgos da década de 1930 e a Segunda Guerra Mundial; e então no final do século, a guerra no Afeganistão e as duas guerras tchetchenas.

Também, durante a era soviética, muitas pessoas foram deslocadas, perderam seus pais e parentes e viram suas identidades étnicas e culturas nacionais serem reprimidas.

“Muitos de nós não sabemos como organizar uma refeição fúnebre adequadamente, como tratar o luto, porque não vimos como nossos pais e avós fizeram isso”, diz Serguêi Mokhov, antropólogo e editor da revista “Arqueologia da Morte Russa”. “Separada das rotinas da vida diária, a morte e os cemitérios se tornaram um tabu.”

A perda do corpo

“A cultura soviética esquivava-se da morte, prezando a juventude e a imortalidade”, explica Sokolova. “Os heróis soviéticos, começando com Lênin, estavam ‘imortalizados na memória das pessoas’, como costumava dizer a propaganda oficial. Era crucial desviar a atenção das pessoas dos expurgos em massa e das baixas de guerra para acalmar a dor, tentando ignorá-la.”

Os rituais também começaram a desaparecer, porque não havia tempo suficiente para eles. Desde o início dos anos 1930 até 1967, os russos trabalhavam seis dias por semana – em parte, porque o governo queria eliminar antigos rituais e hábitos que consumiam grande parte do tempo das pessoas, que poderia ser usado para trabalhar e servir o Estado. Stálin não queria que os russos ficassem de luto por mortos por duas semanas, como era feito antes – eles tinham que erguer o país das cinzas da guerra.

Enquanto isso, a população cresceu e isso significava mais funerais. Na URSS, como em todo lugar do mundo, os necrotérios, hospitais e casas de repouso assumiram funções que originalmente eram desempenhadas por parentes.

“O contato com o corpo foi perdido. Nós não sabemos mais o que é a morte real. Um homem morre, chamamos uma ambulância, a polícia vem junto, e o agente funerário, na sequência. O corpo é retirado, e a próxima vez que o vemos é no caixão”, diz Sokolova. “Estamos renegando a morte... Os rituais ajudavam a reconhecer que a morte é real. Durante três dias, o caixão ficava em sua casa, parentes e amigos vinham prestar condolências, e havia essa comunicação.”

“Os psicólogos dizem que os parentes enterram seus mortos, mas somente depois de duas semanas é que percebem que ele realmente morreu”, acrescenta Mokhov.

Apenas em comunidades fechadas, como os Velhos Fiéis, os antigos hábitos sobreviveram. Sokolova lembra de um desses grupos que recebeu o agente funerário com espingardas e dizendo: “Nosso falecido está perfeitamente confortável em casa.” Como era de se esperar, o corpo não foi levado para o necrotério.

Cemitérios virtuais

Os russos que precisam de apoio após a morte de seus amigos próximos e parentes estão buscando novas formas de lidar e aceitar o fato.

Além disso, cemitérios estão sendo redescobertos pela população urbana. Alguns cemitérios históricos já oferecem visitas guiadas – com estudo de história e arquitetura com base em lápides, criptas e mausoléus –, enquanto outros viraram parques para os locais – com mães e filhos, casais e etc. A infraestrutura muda lentamente, mas os cemitérios estão sendo equipados com bancos de jardim, trilhas para pedestres e mapas com indicação das sepulturas mais importantes.

A maioria dos idosos russos poupa dinheiro, mas não para viajar à Europa ou comprar uma datcha. Eles estão economizando para o funeral, assim como as pessoas faziam antigamente. Hoje, no entanto, quando o enterro na igreja não é mais obrigatório, o processo de economizar é uma maneira de garantir a si mesmo o descanso eterno.

“As pessoas acham que, se comprarem lápides, e supervisionarem o funeral antes, tudo ficará bem e aceitarão a morte de maneira decente”, ressalta Mokhov.

“Recentemente, li um artigo sobre um oncologista que fará um blog sobre seu processo de morte. Ele tem de 3 a 7 anos. Quinze anos atrás, isso seria impensável – quer dizer, ele até podia blogar, mas nenhum jornal publicaria um artigo sobre isso”, diz Sokolova. As pessoas também usam ativamente a internet, e isso é um renascimento do luto coletivo, como acontecia em aldeias da Rússia Imperial. Atualmente, as páginas do Facebook ou do Vkontakte se tornam memoriais para os falecidos, “e isso é realmente útil nas grandes cidades”.

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