‘Jjiônka’, a bebida que veio do ponche e virou a favorita dos hussardos e escritores russos

Comida
SÓFIA POLIAKOVA
Esta bebida alcoólica tornou-se obrigatória em todas as festas e ganhou fama graças à literatura russa: Liérmontov e Gógol escreveram sobre ela, enquanto Púchkin quase se matou sob seu efeito.

Os oficiais do Exército russo que participaram das guerras napoleônicas levaram a receita do ponche para a Rússia. No entanto, sob a influência dos hussardos, a receita mudou e ganhou novo nome.

Ponche russo

Estritamente falando, “jjiônka” é uma espécie de ponche. Em 1803, o historiador francês Grimaud de La Rénier descreveu seu efeito da seguinte forma no livro "Almanaque Gourmet": "O ponche faz você se alegrar, aquece a imaginação e quase nunca embebeda". Pode-se refutar a última afirmação – pelo menos na Rússia.

Depois de cair nas mãos dos oficiais russos, a receita mudou e a frase “ quase nunca embebeda” deixou de ser aplicável a ela. A receita dos hussardos também virou um espetáculo: um enorme tanque era cheio de vinho, duas espadas eram colocadas cruzadas sobre ele e, sobre as espadas, um pão de açúcar (a forma como o açúcar era feito até o século 19, que se parece realmente com as montanhas do Rio de Janeiro). Sobre o pão de açúcar era despejado rum e se acendia um fogo: o açúcar queimava e pingava sobre o rum antes de o fogo ser apagado com champagne. O nome da bebida é proveniente desse “fogo”.

A receita variava: às vezes o rum era substituído por conhaque, utilizava-se tanto vinho tinto, quanto branco, e também eram adicionadas frutas. Quando em campanha, a jjiônka era feita com o que estivesse à disposição, principalmente para com o fim de se aquecer no inverno e para ganhar coragem antes de uma luta. Mas, em tempos de paz, sua preparação se tornou um verdadeiro ritual.

O antigo conde hussardo Osten-Saken escreveu assim sobre a tradição dos oficiais: “A jjiônka tinha sempre um visual bélico: estendiam-se tapetes na sala; no meio do chão, em um recipiente, o açúcar queimava com o rum, o fazia uma fogueira de campanha; ao redor, sentavam-se algumas fileiras de homens com pistolas nas mãos. Quando o açúcar derretia, o champanhe era derramado no recipiente e enchiam as pistolas com a jjiônka pronta: começava a bebedeira.”

A jjiônka foi apelidada de “hussarda” porque os descendentes de famílias ricas e proeminentes, a "juventude de ouro" do século 19, serviam nos regimentos hussardos.

Os hussardos estavam entre os poucos que podiam se dar ao luxo de um entretenimento tão caro: o salário de um oficial era de cerca de 395 rublos por ano — com esse dinheiro, ele tinha que pagar o aluguel, manter um cavalo, comprar uniformes caros e também gastar dinheiro em comida.

Uma garrafa de champanhe custava 2 rublos, um de vinho francês, 50 copeques e um pud (medida russa equivalente a cerca de 16 quilos) de açúcar, 40 rublos. Assim, a jjiônka saía muito caro e, dada a reputação dos hussardos como temerários e galanteadores, é possível imaginar o quanto eles gastavam com essas brincadeiras.

Uma bebida literária

A moda da jjiônka  se espalhou para além dos regimentos de hussardos, pelos círculos literários e estudantis. Aleksander Púchkin era um grande fã da jjiônka. Ivan Liprandi, amigo do poeta, lembrou em suas memórias uma ocasião em que Púchkin e os coronéis Orlov e Alekseiev foram juntos a uma sala de bilhar e decidiram beber jjiônka.

Eles beberam três jarros que, como se pode imaginar, tiveram efeito sobre o poeta: “ Púchkin ficou alegre, começou a se aproximar das bordas da mesa de bilhar e a atrapalhar o jogo. Orlov o chamou de criança, e Alekseiev acrescentou que eles iam aprender... Púchkin correu para longe de mim e, foi misturar as bolas; depois, terminou chamando ambos para um duelo, e eu fui convidado como padrinho do duelo.”

Graças à mediação de Liprandi, o caso não foi adiante. Orlov e Alekseiev pediram desculpas a Púchkin e o duelo foi cancelado.

Mikhaíl Liérmontov, que aprendeu a fazer esta bebida quando ainda estava na escola militar, também escreveu com carinho sobre jjiônka, e Nikolai Gógol a fazia para seus convidados.

A jjiônka manteve sua popularidade por todo o século 19. No livro “Memórias e pensamentos” (sem tradução para o português; título original "Biloie i dumi"), publicado em 1870, Alexander Herzen lembrava como em seus dias de estudante tomava a bebida: "No dia seguinte minha cabeça doía e eu tinha náuseas. Era, claro, culpa da jjiônka: que mistura! E depois disso eu prometia nunca mais beber  jjiônka, aquele veneno!"

No final do século 19, a popularidade da jjiônka começou a decair: a moda passou e também a estrutura dos regimentos oficiais. Poucas pessoas podiam se dar ao luxo de ter um prazer tão caro.

No século 20 a jjiônka passou a ser usada somente na cerimônia de iniciação dos hussardos e, após a Primeira Guerra Mundial, a bebida foi completamente esquecida. 

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