Por que Lev Tolstói foi excomungado da Igreja Ortodoxa Russa?

História
ALEKSANDRA GÚZEVA
No final do século 19, a Igreja ainda desempenhava um papel significativo na sociedade russa, mas muitos começaram a perder sua fé. O famoso escritor russo diagnosticou com precisão a crise de fé na sociedade e tentou oferecer uma nova solução espiritual, mas a Igreja reconheceu suas ideias religiosas como uma “falsa doutrina”.

"O escritor mundialmente famoso, de origem russa, ortodoxo por batismo e educação, o conde Tolstói [...] se rebelou desafiadoramente contra o Senhor e contra o Cristo”, lê-se na declaração do Santo Sínodo, principal órgão da Igreja Ortodoxa Russa, publicada em 24 de fevereiro de 1901 na revista “Tserkóvnie Védomosti” (“Notícias da Igreja”, em português).

Segundo o Sínodo, Tolstói “renunciou à Mãe que o nutriu e criou, a Igreja Ortodoxa”, e dedicou o seu talento e atividade literária a “difundir entre o povo ensinamentos contrários a Cristo e à Igreja”.

Como resultado, por “falsos ensinamentos anticristãos e anti-Igreja”, o Sínodo anunciou o “afastamento” de Tolstói da Igreja Ortodoxa Russa.

Como o escritor irritou tanto a Igreja?

No início da década de 1880, o profundamente religioso Tolstói entrou em um período de crise espiritual. Na época, começou a repensar as questões religiosas e parou de seguir os rituais, acreditando que a verdadeira fé não exigiria intermediários como padres ou igreja.

As principais obras religiosas de Tolstói foram o romance “Ressurreição” e os tratados filosóficos “Confissão” e “Qual é a minha fé?”. Nesses trabalhos, ele expressou ideias bastante ousadas, como, por exemplo, a negação da origem divina de Cristo e dos milagres que ele havia realizado.

Tolstói explicou que, com seus ensinamentos religiosos e seus artigos filosóficos, ele queria superar a crise de fé na sociedade russa no final do século 19. Ele acreditava que era necessário salvar a fé da Igreja obsoleta e encorajar as pessoas a orarem por conta própria. O escritor tinha muitos seguidores chamados de tolstoístas.

Já na década de 1880, clérigos famosos começaram a entrar em atrito com Tolstói. Um dos padres mais influentes da época, João de Kronstadt, chamou Tolstói de “um herege que superou todos os hereges”.

As primeiras ideias sobre a excomunhão do escritor surgiram em 1896. Um dos inspiradores ideológicos foi o promotor-chefe do Santo Sínodo, ou seja, o chefe secular da Igreja nomeado pelo imperador, Konstantin Pobedonostsev. 

No entanto, a Igreja e o governo demoraram para tomar uma decisão final, percebendo que isso teria um efeito explosivo na sociedade. O imperador sempre respondia que “não queria acrescentar uma coroa de mártir à glória de Tolstói”. Alexandre 3º adorava as obras de Tolstói, e a tia do escritor era dama de honra na corte imperial e sempre o defendeu à frente do monarca.

A decisão de excomunhão foi tomada durante o governo do próximo e último imperador russo, Nicolau 2º. Antes de anunciá-la, os padres até consultaram Pobedonostsev: no caso da morte de Tolstói, o seu funeral deveria ser realizado de acordo com os cânones da igreja ou não? O procurador-geral respondeu positivamente: “caso contrário, que turbulência se dará!”.

Por que a excomunhão não surtiu efeito?

No dia seguinte à tomada da resolução do Sínodo, todos os jornais do Império Russo divulgaram a notícia. Começou um verdadeiro escândalo, a população não entendia como o mais famoso escritor russo poderia ser excomungado.

Tolstói também protestou. Em resposta ao Sínodo, escreveu: “Não digo que a minha fé é a única que é indubitavelmente verdadeira em todos os momentos, mas não vejo outra — mais simples, mais clara e que cumpra todas as exigências da minha mente e coração. Se eu encontrar uma, a aceitarei imediatamente, porque Deus não precisa de nada além da verdade”.

Além disso, Tolstói ficou irritado com o fato de que não foi excomungado conforme as regras da Igreja, ou seja, legalmente o decreto não tinha força.

A excomunhão com execração, ou anátema, havia sido anteriormente aplicada na Rússia contra Velhos Crentes; criminosos de escala estatal, como, por exemplo, Grigóri Otrépiev, conhecido como Falso Demétrio 1º; e rebeldes contra o Estado, como Stepan Razin e Emelian Pugatchov. Entre 1869 e 1917, nenhuma pessoa foi excomungada da Igreja na Rússia, porque a excomunhão era considerada uma punição extremamente severa.

Assim, oficialmente Tolstói não foi anatematizado. A declaração do Sínodo foi redigida em termos cautelosos, o escritor não foi propriamente chamado de “excomungado”, porém de “afastado da Igreja”. No final da resolução, o Sínodo escreveu que a Igreja oraria para que Deus enviasse arrependimento a Tolstói e o fizesse voltar para a Santa Igreja.

Consequências na prática

No final do século 19 e início do século 20, a autoridade moral e a popularidade de Tolstói entre a comunidade secular russa eram muito maiores do que as da Igreja. De acordo com o especialista em Tolstói, Pável Bassínski, o público, que adorava o escritor, riu da decisão do Sínodo e aplaudiu Tolstói. Na Exposição Itinerante de março de 1901, o retrato de Tolstói pintado pelo famoso artista russo Iliá Répin foi coberto de buquês de flores. No mesmo ano, o escritor foi nomeado para o Prêmio Nobel da Paz.

A censura estatal, por sua vez, proibiu a publicação de todas as obras religiosas de Tolstói. Porém, como qualquer proibição, isso causou apenas uma onda de interesse, e ele se tornou uma figura ainda mais cultuada. A “excomunhão”, concebida para salvar os crentes da “falsa doutrina” de Tolstói, teve o efeito exatamente oposto.

“A proibição da publicação das obras religiosas (e não apenas religiosas) de Tolstói na Rússia e a perseguição das pessoas que as distribuíam ajudaram a popularizar as ideias de Tolstói, que eram vistas como a verdade escondida do povo pelo Estado e pela Igreja oficial”, escreveu Bassínski.

Embora Tolstói em si não tenha sofrido grandes represálias, começou uma perseguição aos seguidores tolstoístas. Os mais ativos e quase todos aqueles que, por motivos religiosos, recusaram-se a ingressar no exército na Primeira Guerra Mundial, acabaram no exílio e nos campos de trabalho forçado.

Tolstói não foi reabilitado pela Igreja Ortodoxa Russa até hoje. Não houve liturgia oficial em seu funeral, e apenas um padre desconhecido concordou em ler uma oração sobre o seu túmulo.

Sabe-se que, no fim da vida, Tolstói buscou proximidade com a Igreja e visitava o mosteiro de Chamórdino, onde sua irmã morava como freira. Mas, segundo os seus contemporâneos e conhecidos, ele jamais pensou em se redimir e via tal destino apenas como uma parte de sua mudança espiritual.

Nos tempos modernos, foram enviados diversos pedidos à Igreja Ortodoxa Russa para reconsiderar a decisão do Sínodo. No entanto, devido à não demonstração pública de arrependimento e à renúncia aos julgamentos da Igreja, a instituição religiosa sempre respondeu negativamente.

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