Março de 1919. A Guerra Civil segue devastando a Rússia, mas, dentro do Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, prevalece um silêncio misterioso. A cortina se abre para revelar uma figura esguia banhada por uma luz suave: a bailarina Olga Spessivtseva, preparando-se para estrear o balé “Giselle”.
Quando a música começa, Olga se põe em movimento; cada passo é uma prova de graça e emoção. A bailarina personifica Giselle de forma tão convincente que os críticos afirmavam testemunhar uma extensão de sua própria existência. A crítica da época sequer conseguia desviar os olhos da performance que definiria o padrão para todas as futuras Giselles.
Este foi apenas um dos muitos destaques na vida de Olga Spessivtseva (1895-1991). Uma das maiores bailarinas do século 20, Spessivtseva nasceu em uma pequena vila perto de Rostov-no-Don, no sul da Rússia. A jornada rumo ao cenário mundial foi marcada por talento e aclamação, porém não faltaram dificuldades — inclusive no fim da vida, vivendo em pobreza e esquecimento.
O pai de Olga, um ator de teatro local, morreu quando ela tinha apenas seis anos. Sua mãe se viu obrigada a alimentar uma casa com cinco filhos e acabou enviando Olga para um orfanato em São Petersburgo.
Quatro anos depois, quando tinha 10 anos, Olga foi matriculada na Escola Imperial de Balé, pelo talento natural que já demonstrava.
Sob os olhares de tutores influentes, como Agrippina Vaganova, Olga aprimorou suas habilidades, exibindo graça natural e uma rara capacidade de transmitir emoções por meio do movimento.
Ascensão meteórica
A ascensão de Olga ao estrelato foi meteórica. Em 1913, aos 18 anos, ingressou no Balé Imperial Russo (mais tarde conhecido como Balé de Kirov) e rapidamente ganhou reconhecimento por sua técnica e arte expressiva.
Os primeiros sucessos de Olga se deram em maio de 1916, quando desempenhou o adágio no “Reino das Sombras” e também o papel de Nikiya em “La Bayadère”, de Marius Petipa.
“A beleza de seus arabesques rivalizava com [uma das bailarinas mais famosas de todos os tempos, Anna] Pavlova; cada pose era precisa e firme”, disse Akim Volinski, famoso crítico da época. Mas Olga queria assumir o papel de Giselle, e Pavlova e Tamara Karsavina eram as bailarinas reinantes. Para aprimorar a sua caracterização, ela visitou uma instituição de saúde mental para estudar o comportamento e expressões dos pacientes.
Sua estreia em “Giselle”, em março de 1919, foi um grande sucesso.
“A leveza de sua elevação era quase inconcebível e ela ultrapassou os limites da arte”, escreveu o crítico Valéri Bogdanov-Berezovski.
“Sua atuação como Giselle foi insuperável por qualquer atriz viva; nenhum delas poderia se comparar em arte e interpretação dramática”, lembrou a bailarina Vera Nemtchinova em uma carta datada de maio de 1960. “Tudo era tão fácil para ela e nunca vi nenhuma artista comparável.”
Carreira internacional
Em 1916, em meio à Primeira Guerra Mundial (embora os EUA ainda permanecessem neutros na época), o grande empresário do teatro russo Serguêi Diaghilev convidou Olga para fazer uma turnê com seus Ballets Russes. A bailarina dançou na cidade de Nova York com o famoso Vaslav Nijinsky em “Le Specter de la Rose” e “Les Sylphides”.
Seu primeiro grande sucesso internacional, porém, veio quando viajou com Diaghilev para Londres em 1921 e Buenos Aires em 1923, onde dançou no Teatro Colón. Durante a viagem a Londres, apresentou-se em “A Bela Adormecida”, de Marius Petipa, que foi ambientada com a música de Tchaikovsky. Quando dançava no exterior, era frequentemente chamada de Olga Spessiva, porque seu nome parecia longo e difícil de pronunciar.
De volta à Rússia, já com a ascensão do poder soviético, Olga se envolveu com um oficial bolchevique chamado Boris Kaplun (alguns dizem que ele era um oficial tchekista), que a ajudou a deixar a URSS em 1924. Naquela época, era cada vez mais difícil obter o visto necessário para sair do país.
Uma vez no exterior, Olga se juntou à turnê europeia dos Ballets Russes. A primeira parada foi Paris, o epicentro do balé mundial. Como prima ballerina, protagonizou “O Lago dos Cisnes”, “Esmeralda” e “A Filha do Faraó”. Suas atuações em “Les Sylphides” e “A Bela Adormecida” cativaram o público, e os críticos a aclamaram como o epítome da graça e elegância.
“Perdi o limite do espanto quando conheci Spessivtseva, uma criatura mais refinada e ainda mais pura que Pavlova”, disse Diaghilev sobre Olga.
Ao longo da carreira, Olga colaborou com famosos coreógrafos e bailarinos de sua época. A parceria com o lendário mestre de balé Michel Fokine produziu interpretações memoráveis de clássicos como “Les Sylphides”. Já a química com dançarinos aclamados, incluindo Leonide Massine e Serge Lifar, acrescentou profundidade e intensidade às apresentações.
Perfeccionista
Nas décadas de 1920 e 1930, a estrela de Olga continuou a brilhar. Os colegas frequentemente comentavam que era muito persistente e perfeccionista.
Em 1927, o mestre de balé George Balanchine criou o balé “La Chatte” especialmente para ela. As interpretações de Olga foram marcadas por uma musicalidade primorosa e uma rara capacidade de evocar emoções profundas por meio da dança.
Quando Diaghilev morreu, em 1929, o Ballet Russes se desfez.
Em 1932, Olga ingressou no recém-formado Ballet Russe de Monte Carlo, pelo qual assumiu os papéis icônicos como Odette/Odile em “O Lago dos Cisnes” e novamente a protagonista em “Giselle”.
“Ela era uma garota sensível e tranquila; era sempre pontual e nunca tinha acessos de raiva; era muito próxima da mãe, que a acompanhava em todos os lugares”, lembrou a bailarina Romola Nijinsky, em uma carta datada de maio de 1960. Romola era a esposa de Nijinsky. “O meu marido estava convencido de que, em Olga, havia encontrado uma dançarina do mesmo calibre de Pavlova.”
O trabalho de Olga também a colocou em contato com outras grandes figuras da cultura russa, como o artista e designer de teatro Leon Bakst. “Em 1921, em Londres, conheci [Bakst] pessoalmente e dancei ‘A Bela Adormecida’ — também encenada e desenhada por Bakst. Em 1924, [Bakst] estava trabalhando na ópera em Paris. Ele falou com o diretor sobre mim e, graças à intervenção [de Bakst], assinei um contrato e dancei em ‘Giselle’”, relembrou Olga em carta a uma amiga.
Passos falsos
No outono de 1934, enquanto dançava na Austrália, Olga teve seu primeiro colapso mental, ao suspeitar que outras dançarinas eram espiãs que tentavam envenená-la. Em 1939, fez sua apresentação de despedida no Teatro Colón (Buenos Aires) e, no mesmo ano, mudou-se para os EUA, onde passou a lecionar na Ballet Theatre Foundation, em Nova York.
Em 1941, seu parceiro romântico, o rico empresário norte-americano Leonard G. Braun, morreu repentinamente e seus delírios se intensificaram; ela chegou a se esconder em um quarto de hotel na cidade de Nova York, chorando com medo de que os espiões estavam de volta e a envenenariam.
Sozinha nos Estados Unidos, no final de 1941, Olga foi internada como paciente de caridade em um manicômio ao norte de Manhattan. “Spessiva não tem parentes neste país e não está racional o suficiente para falar de maneira inteligente sobre si mesma e seu passado”, escreveu o advogado nova iorquino Edmond Mann em novembro de 1949; ele a representava. “Ela, às vezes, percebe que já foi uma grande estrela. Por causa de seus delírios e de suas alucinações, ela mostra pouco interesse pelo ambiente e tende a negligenciar suas necessidades pessoais e aparência.”
“Fui visitá-la muitas vezes. Era uma visão de partir o coração… outra grande dançarina cuja carreira foi destroçada. A Olga, hoje, está esquecida, poucos amantes do balé lembram dela”, disse Romala em 1960.
Queria voltar para a Rússia
A permanência no manicômio atormentou Olga, que, na época, tornou-se uma devota da ortodoxia russa. Documentos da Biblioteca Pública de Nova York indicam que a bailarina foi mantida no local contra sua vontade.
Sua família em Leningrado (atual São Petersburgo) e o Consulado Soviético tentaram libertar e retorná-la à Rússia.
“Ela está determinada a voltar para casa na Rússia, em Leningrado, que não é exatamente a São Petersburgo de sua infância. Após 20 anos de exílio, ela sente saudades de casa – de sua família, irmã e irmão, do povo russo. Ela tem 67 anos. Ela quer ir [à Rússia] para morrer”, escreveu o amigo íntimo, Dale Fern, em uma carta à primeira-dama Jacqueline Kennedy em 1962.
No final de 1963, Olga recebeu alta do manicômio, após uma recuperação dramática, devido a uma nova medicação. Mas, em vez de realizar seu desejo de retornar à Rússia, a comunidade local de emigrados, que era fortemente antissoviética, providenciou para que ela fosse colocada sob os cuidados da Tolstoy Foundation em Valley Cottage, Nova York.
Essa instituição havia sido fundada em 1939 por Alexandra Tolstaya, a filha mais nova do grande escritor, com o objetivo de atender refugiados russos e dar um lar a idosos emigrados que enfrentavam a miséria. Olga passou o resto de sua vida na Fundação e morreu lá em 1991, aos 96 anos. Está enterrada no Cemitério Ortodoxo Russo Novo-Diveevo em Nanuet, Nova York.
Em janeiro de 1997, o Teatro Boris Eifman, em São Petersburgo, estreou o espetáculo “Giselle Vermelha”, uma história da angústia de uma bailarina envolvida no drama da Rússia revolucionária e suas consequências. A vida de Olga Spessivtseva serviu de inspiração para Eifman.
(O autor desta reportagem agradece à Biblioteca Pública de Nova York por conceder acesso aos arquivos de Dale Fern e Olga Spessivtseva).
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