Uma breve história dos judeus na Rússia

Russia Beyond (Domínio público; Serguêi Piatakov/Sputnik)
No início do século 20, cerca de 80% da população judaica mundial vivia no Império Russo. Por que a Revolução Russa de 1917 foi considerada judaica e como os judeus viviam na URSS?

Apesar da posição geográfica consideravelmente distante de Israel, a Rússia tem sido associada aos judeus desde seu surgimento. Quando um de seus primeiros governantes, o príncipe Vladímir, escolhia a fé de seu povo, no século 10, ele considerou, entre outras religiões, o judaísmo.

Esse fato histórico, sozinho, mostra que, naquela época, os russos já tinham contatos próximos com os judeus. Segundo a “Crônica Primária”, Vladímir hesitava em relação à fé judaica, entre outras coisas, porque os judeus tinham sido expulsos de sua terra natal e estavam espalhados pelo mundo. 

Ivan Eggink.

Ao lado dos russos viviam os antigos cazares, um povo de origem turcomana seminômade que dominava a Ásia Central e cujos governantes se converteram ao judaísmo.

A partir daí, surgiu a hipótese de que todos os judeus Asquenazes europeus não descendem dos israelenses, mas dos cazares, que praticavam o judaísmo e fugiram para a Europa após o colapso de seu Estado, o Canato Cazar, no século 10. Essa teoria, porém, é negada por muitos historiadores israelenses.

Judeus na Rússia Antiga

Após a expulsão dos judeus da maioria dos Estados europeus no século 14, eles se estabeleceram nos territórios das atuais Polônia, Lituânia, Ucrânia e Bielorrússia, que não faziam parte da Rússia na época. Por muito tempo, os judeus foram proibidos de se estabelecer em terras russas.

O primeiro tsar de Toda a Rússia, Ivan, o Terrível, foi especialmente rígido e proibiu completamente a entrada de judeus no país. A principal razão era a rejeição religiosa de pessoas de outra fé. A única maneira de entrar e permanecer na Rússia era se convertendo à Igreja Ortodoxa Russa. Judeus convertidos recebiam autorização para se estabelecer na Rússia e até recebiam pagamentos por isso.

Judeus no Império Russo

Durante o reinado do primeiro imperador russo, Pedro, o Grande, o modo de tratar os judeus no país mudou. Pedro, que favorecia tudo o que era estrangeiro, aproximou-se de alguns judeus poloneses, concedendo-lhes altos cargos públicos. Por exemplo, o barão judeu Piotr Chafirov se tornou um diplomata importante, responsável pela comunicação com o rei polonês, e chefe de todos os serviços postais russos.

No entanto, imediatamente após a morte de Pedro, voltou a ser empregado um tratamento desdenhoso para com os judeus. A viúva do tsar e a nova imperatriz Catarina 1ª mandou expulsar todos os judeus do país.

A filha de Pedro, Isabel, continuou esta política. Apesar de o Senado a instar a deixar os comerciantes judeus frequentarem pelo menos temporariamente as feiras, seu decreto “sobre a expulsão dos judeus" continha a seguinte frase: "Não quero lucro dos inimigos de Cristo".

A Rússia ganhou uma população judaica significativa só no final do século 18, quando o império tomou controle sobre partes da Polônia, onde viviam muitos judeus Asquenazes, e da Crimeia, onde os viviam os Crimtchaks e Caraítas, povos locais que se converteram ao judaísmo.

Ilustração:

Por um curto período de tempo, a imperatriz Catarina 2ª (também conhecida como Catarina, a Grande), permitiu que judeus poloneses vivessem em cidades diversas, negociassem e se dedicassem ao artesanato.

No entanto, a proximidade com a população judaica logo começou a causar indignação entre os russos: o judaísmo “assustava” os critsãos ortodoxos. O “susto” tinha alguma razão de ser, já que os judeus não queriam se assimilar, eram demasiado religiosos e obtinham um sucesso comercial sem precedentes. Os judeus eram considerados “abusadores” e “culpados pela pobreza” dos outros.

Zona de assentamento judaico na Rússia

Em 1791, Catarina, a Grande, emitiu um decreto segundo o qual os judeus só poderiam residir em uma determinada área, no sudoeste do Império Russo, onde tinham vivido quando receberam cidadania russa. Trata-se dos territórios da moderna Polônia, Lituânia, Letônia, Bielorrússia, Ucrânia e Moldávia.

A fronteira desse território ficou conhecida como "Tchertá Ossiédlosti", ou "Zona de assentamento [judeu na Rússia]", em português. A maior parte dos judeus falava iídiche e vivia em "mestiatchki", ou seja, cidades apropriadas para a classe comercial e artesanal.

Mapa da Rússia Ocidental mostrando a

Os topônimos dessas cidades renderam sobrenomes a muitos judeus russos. Por exemplo, a cidade de Brody, na Polônia (mas que hoje faz parte da Ucrânia), rendeu sobrenome a muitos judeus, entre eles, o grande poeta russo Joseph Brodsky.

Como resultado, no final do século 19 cerca de 5 milhões de judeus viviam na Rússia e eram a quinta maior etnia do país (ali, até hoje, o “judeu” é considerado uma “etnia” ou “nacionalidade”). Quase todos eles viviam na "Zona de assentamento" e tinham seus direitos limitados.

Ao mesmo tempo, os judeus tinham uma alta taxa de natalidade e condições de vida relativamente boas. No início do século 19, quase metade da população judaica mundial vivia no Império Russo. Já no final do século 19, eram 80% dos judeus de todo o mundo que viviam na Rússia, segundo o historiador israelense Shlomo Zand.

Os judeus podiam sair da "Zona de assentamento", mas isso era muito difícil. Era preciso se tornar um comerciante da primeira guilda, obter educação superior, servir no exército ou ser designado a determinadas lojas de artesanatos. Aos poucos, a lista de profissões para judeus cresceu, mas sua admissão em escolas e instituições educacionais era difícil.

Yehuda Pen. Divórcio, 1907. De uma série de pinturas sobre a vida na

As regras eram um pouco mais brandas para os judeus do Cáucaso, ou seja, dos territórios anexados ao império já após o surgimento da “Zona de assentamento". Em Moscou, por muito tempo, os judeus foram autorizados a morar apenas em um bairro, chamado Glébovskoie Podvórie, onde, no final do séсulo 19, surgiu a primeira sinagoga na Rússia.

Todos os judeus que se converteriam ao cristianismo recebiam todos os direitos que os outros súditos tinham.

Liberalização e endurecimento

A política do governo russo em relação aos judeus mudou várias vezes. Durante o reinado do imperador Alexandre 1º, iniciou-se uma liberalização. O monarca libertou os judeus das terras recém-adquiridas do dever de recrutamento.

O imperador Alexandre 3º também suavizou as leis quanto à população judaica. Por exemplo, ele permitiu que as comunidades construíssem sinagogas fora da "Zona de assentamento".

Muitos judeus começaram a alcançar grande sucesso. Assim, por exemplo, os banqueiros Ginzburg ficaram conhecidos em todo o país e até receberam um baronato. Havia também grandes industriais judeus, como os magnatas do açúcar da família Brodsky.

A partir do final do século 19, os judeus começaram a se integrar ativamente na vida cultural do país, e surgiram ali muitos artistas e músicos proeminentes de origem judáica. Por exemplo, o artista Isaac Levitan ingressou na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou e até ganhou uma bolsa de estudos integral por seu talento nato. Como resultado, Levitan alcançou inacreditável sucesso na pintura de paisagens realistas russas.

Isaac Levitan.

A liberalização abriu caminho para inúmeros judeus talentosos: o escultor Mark Antokólski, o pianista Anton Rubinshtein, Marc Chagall, a dançarina Ida Rubinstein. escritores Isaac Babel, Iliá Ilf, Ossip Mandelstam, Joseph Brodsky, Mikhail Jvanetski. O escritor Sholom Aleichem, proveniente de uma cidade que hoje faz parte da Ucrânia, por exemplo, é considerado o fundador da literatura russa em iídiche.

Ao mesmo tempo, muitos judeus jovens entraram para grupos revolucionários, inclusive para a radical organização Narôdnaia Vôlia, que esteve por trás do assassinato do imperador Alexandre 2º, em 1881.

O imperador Alexandre 3º endureceu a política em relação aos judeus. Foi quando se iniciaram os “pogróms” anti-judaicos, ou seja, atos de violência contra judeus. O governo não protegia os judeus da perseguição pela população russa. Segundo diversos historiadores, o tsar era, ele mesmo, um antissemita. Diversas sinagogas foram fechadas na época e a construção de novas foi proibida.

Retrato de um judeu, da série fotográfica

O último imperador russo, Nicolau 2º, que ascendeu ao trono em 1894, não suavizou a política em relação aos judeus. Por causa dos crescentes “pogróms”, os judeus começaram a emigrar em massa.

Assim, em 1903, por exemplo, Golda Meir deixou o Império Russo com seus pais. Ela viria a ser a única primeira-ministra de Israel do sexo feminino e uma das fundadoras do Estado de Israel. Ela era proveniente de Kiev e seu pai chegou até mesmo a receber o direito de se estabelecer fora da "Zona de assentamento".

Revolução "judaica"

A Revolução Russa foi, em grande parte, realizada por jovens e ambiciosos judeus, entre eles Leon Tróstki (sobrenome real Bronstein), Grigóri Zinoviev (Apfelbaum), Lev Kámenev (Rosenfeld) e Iakov Sverdlov.

O revolucionário Leon Trotsky, que foi assassinado a mando de Stálin. Foto de 1918.

O grande número de revolucionários de origens judias contribuiu para o nascimento de uma teoria da conspiração que ligava intrinsecamente comunistas a judeus — mais tarde, ela foi amplamente empregada pelos propagandistas nazistas, que associavam bolchevismo e comunismo com os judeus.

A Revolução de 1917 e o regime soviético permitiram não só que os judeus se estabelecessem onde quisessem, mas também, pela primeira vez, ocupassem cargos governamentais importantes, obtivessem educação formal e exercessem qualquer profissão que desejassem.

Judeus conversam em frente a uma loja. Foto tirada por volta do ano de 1916.

Ao mesmo tempo, isso causou uma onda de antissemitismo entre os oponentes da Revolução. Por exemplo, é conhecido o profundo antissemitismo do general Deníkin, do Movimento Branco, que apoiava os “pogróms” no sul da Rússia. Além disso, após a Revolução, um sentimento de antissemitismo começou a crescer e muita gente passou a acreditar que os judeus viviam “às custas dos outros”.

Stálin e os judeus

O ditador soviético Ióssif Stálin realizou uma política nacional dura, reassentando diversos povos, entre eles, os judeus. Ele planejava criar sua própria "terra prometida" soviética no Extremo Oriente: foi assim que surgiu a Região Autônoma Judaica, um distrito federal russo até hoje. Porém, o projeto falhou: poucos queriam se mudar voluntariamente para uma região tão remota e inóspita.

Nos últimos anos da vida de Stálin, a KGB fabricou um caso chamado "Complô dos médicos". Segundo a versão oficial do governo, tratava-se de uma conspiração realizada por médicos judeus que trabalhavam para a inteligência estadunidense para assassinar os líderes do Partido Comunista da União Soviética — entre eles, Stálin.

Os médicos foram acusados de criar uma organização nacionalista judaica e foram denunciados na imprensa soviética, o que levou ao início de uma campanha antissemita massiva na URSS.

O poeta soviético Joseph Brodsky, que emigrou para os Estados Unidos.

Em 1952, treze médicos judeus foram executados por fuzilamento, enquanto centenas de outros judeus foram julgados e condenados a diversas penas.

Depois da morte de Stálin, em março de 1953, os governantes soviéticos confessaram que se tratava de um caso inventado, com o objetivo de prender e executar líderes comunistas que não concordavam com as políticas de Stálin.

Judeus soviéticos

Apesar da participação ativa dos judeus na Revolução e na construção do Estado soviético, o judaísmo era combatido na URSS, junto com todas as outras religiões. O governo soviético fechou sinagogas e usava os prédios como armazéns — ou, na melhor dos casos, como casas de cultura.

Às vésperas do ataque da Alemanha nazista, ainda vivia na URSS o maior número de judeus do mundo: eram quase cinco milhões de residentes permanentes, além dos 500 mil refugiados. Depois da guerra, por várias razões, menos da metade deles permaneceu na URSS. Muitos morreram na guerra, enquanto outros se mudaram para países diversos ou foram repatriados.

O rabino Yakov Fishman durante o Rosh Hashanah na Grande Sinagoga Coral, em Moscou, em setembro de 1973.

Muitos judeus soviéticos se tornaram ateus e romperam com suas tradições, mas continuaram sendo uma classe discriminada. A palavra “judeu” no campo “nacionalidade” do passaporte soviético era quase um estigma, e aqueles que a levavam impressa não queriam mostrar a ninguém.

Extra-oficialmente, funcionários públicos constantemente impediam os judeus de entrar em universidades e subir na escala social. Além disso, havia também o antissemitismo cotidiano. Muitos judeus passaram a esconder sua nacionalidade e até a comprar documentos falsificados. Devido a isso, muitos viriam a ter problemas mais tarde com a repatriação — devido à falta dos documentos necessários para confirmar a origem judaica.

Despedida de judeus partindo para Israel no aeroporto de Sheremetyevo, na década de 1970.

Isso levou a um êxodo em massa de judeus para Israel a partir da década de 1970. Durante a Perestroika, cerca de 600 mil judeus emigraram da URSS ou obtiveram outras cidadanias e renunciaram à soviética. Hoje, cerca de 25% da população de Israel é constituída por imigrantes russófonos provenientes da URSS.

Judeus na Rússia moderna

Atualmente, de acordo com o Censo da População de toda a Rússia de 2020, mais de 82 mil cidadãos russos se autodenominam judeus. O campo "nacionalidade" não existe mais no passaporte russo e, assim, não é possível confirmar o número.

Judeus na Grande Sinagoga Coral celebram a libertação do nazismo. Foto de 2021.

De acordo com a Federação das Comunidades Judaicas da Rússia, mais de 100 cidades russas têm comunidades judaicas e 45 cidades têm seus próprios rabinos. Na Rússia há mais de 30 restaurantes e lojas kasher em funcionamento, além de muitas escolas infantis, editoras especializadas, veículos de imprensa e livrarias.

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