“Não havia ninguém para servir de tradutor em um assunto tão grandioso e transmitimos... assuntos secretos de grande importância, desejando fazer amizade contigo... Pedimos-lhe que enviasse Anton [o embaixador Anthony Jenkinson] porque queríamos perguntar se ele havia transmitido a ti as palavras que dissemos a ele e se tu concordavas com nossa proposta e quais eram tuas intenções." Foi assim que Ivan, o Terrível (1530-1584), escreveu à rainha Elizabeth 1° (1533-1558; também conhecida pela forma aportuguesada como Isabel 1°), em 24 de outubro de 1570.
Essa carta e as evidências de seus contemporâneos marcaram todo um início do fracasso da unificação das duas dinastias. Mas que tipo de "assuntos secretos de grande importância" seriam aqueles?
Como começou a correspondência entre o monarca russo e a inglesa?
Com assuntos comerciais, claro! Em 1551, por iniciativa do famoso astrônomo inglês John Dee, foi fundada na Inglaterra a "Companhia comercial de mercantes viajantes para a descoberta de terras, países, ilhas e lugares desconhecidos".
Seu objetivo era encontrar uma passagem pelo norte oriental para a China. Mas, ao invés disso, os comerciantes ingleses estabeleceram laços comerciais permanentes com o Reino de Moscou.
Os ingleses criaram assim a Companhia de Comércio de Moscou e levaram estanho, tecido e armas para o país. Em troca, eles receberam cânhamo, madeira, banha de mamíferos aquáticos e alcatrão. Ivan, o Terrível, concedeu à empresa o direito de conduzir um comércio livre de impostos no país.
O crescimento da balança comercial entre os países levou a uma animada correspondência comercial entre Ivan, o Terrível, e Elizabeth 1°. A rainha inglesa foi a única mulher a quem o Terrível escreveu.
Mas nem todo assunto podia ser confiado ao papel, e algumas informações eram transmitidas através de um confidente, o embaixador inglês Anthony Jenkins — que acabou passando a casamenteiro.
Por que Ivan, o Terrível, precisava se casar com a rainha inglesa?
Em 1570, Ivan, o Terrível, aos quarenta anos de idade, já tinha ficado viúvo duas vezes e, em ambas as ocasiões, havia fortes boatos de que suas esposas tinham sido envenenadas. A Elizabeth 1°, aos 37 anos de idade, tinha então governado a Inglaterra por 12 anos, evitando com êxito as exigências parlamentares de que ela escolher um cônjuge e garantisse um herdeiro ao trono inglês.
Jerome Gorsey, representante da Companhia Comercial de Moscou, que deixou um memorial detalhado do reino em Moscou, escreveu que Ivan, o Terrível, questionou o médico da corte, Elysius Bomelius, sobre a idade da Rainha Elizabeth e quanto poderia ser exitoso um pedido de casamento a ela.
"Embora ele tivesse razões para duvidar do sucesso, já que a rainha havia recusado a união com muitos reis e grandes duques, não perdeu a esperança, considerando-se superior a outros soberanos em qualidades pessoais, sabedoria, riqueza e grandeza. Ele estava determinado a tentar”, escreveu.
Gorsey também aponta a razão de Ivan buscar uma noiva tão longe: o casamento permitiria ao tsar buscar refúgio na Inglaterra no caso de consequências desastrosas na Guerra da Livônia ou conspirações domésticas, o que o tsar temeu por toda sua vida. A informação de Gorsey é confirmada pela crônica de Pskov, de 1570, indicando a intenção do tsar de fugir para a Inglaterra e se casar ali.
Assim, em sua carta de outubro de 1570 a Elizabeth 1°, entre os assuntos habituais do comércio, o tsar menciona repetidamente alguns "assuntos secretos de grande importância", que tinah transmitido à rainha através de seu enviado, Anthony Jenkins.
Os historiadores acreditam que se trata de uma proposta de casamento que foi rejeitada. Ivan, o Terrível, reagiu à recusa com dureza, como sempre. Ele não apenas chamou Elisabeth 1° de "moça vulgar", mas também ressaltou sua incapacidade de governar o próprio país e de tomar decisões benéficas para o Estado. A correspondência foi interrompida por longos 12 anos.
Ivan, o Terrível, tentou se casar com Maria de Hastings?
O fracasso não dissuadiu Ivan, o Terrível, de um casamento n a casa real inglesa. Em 1582 o tsar enviou a Elizabeth 1° seu embaixador, Fiodor Pissemski, com a tarefa de discutir os termos do tratado de aliança com a Inglaterra e, em segundo lugar, para negociar os termos de um possível casamento entre o tsar e Mary Hastings.
Alguns historiadores acreditam que a questão do casamento estava intimamente ligada ao problema da assinatura do tratado de aliança e era praticamente inseparável dele.
Pissemski recebeu instruções detalhadas sobre as questões sensíveis que Elizabeth 1° poderia ter a respeito da proposta de Ivan. A principal era que Ivan, o Terrível, era casado com sua sexta (de acordo com algumas testemunhas, a sétima) esposa, Maria.
Na época do pedido de casamento, além de tudo, tinha até tido um filho. Isso, porém, não constrangia o noivo, e Pissemski devia prometer às pretendentes que o tsar se divorciaria e os filhos do novo casamento, mesmo não herdando o trono, ganhariam vastas propriedades.
A epidemia de peste em Londres e a evidente relutância do lado inglês em contrair casamento congelou qualquer ideia de matrimônio. O embaixador inglês, que partiu com Pissemski a Moscou, em vez de discutir os termos de um casório, dissuadiu o tsar de se casar com Mary Hastings de todas as maneiras possíveis. Antes mesmo de uma resposta final, Ivan, o Terrível, morreu, em 1584.
A história das duas tentativas fracassadas de se casar na Inglaterra esquentou as hipóteses sobre a violenta morte de Ivan, o Terrível. Vários historiadores que sustentam a ideia de que o tsar morreu por envenenamento com arsênico e mercúrio acreditam que a insistência dele em se casar com uma inglesa foi um catalisador para sua morte, pois ia contra as ambições de Boris Godunov (1552-1605) e seus parentes.
Isso porque o casamento do tsar na Inglaterra poderia levar seus filhos “ingleses” a herdar o trono, fazendo com que Teodoro (filho de Ivan e cunhado de Godunov — Teodoro era casado com Irina, irmã de Godunov) não se tornasse tsar. Assim, existe a hipótese de que a morte de Ivan, o Terrível tenha sido causada pelos apoiadores de Godunov.
A Rússia e a Inglaterra tiveram outra chance de união somente no século 19, quando, apesar da oposição de ambas as famílias, Maria, filha do imperador russo Alexandre 2°, e o príncipe Alfred, duque de Edimburgo, segundo filho da rainha Vitória, se casaram.
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