Por que quase todos os quintais da Moscou soviética tinham um pombal?

História
EKATERINA SINELSCHIKOVA
Pombais eram parte integrante do modo de vida soviético. Mas como a criação de pombos tornou-se uma obsessão soviética?

"Foi uma epidemia terrível, longa e incurável, que nem a fome nem a guerra puderam erradicar. Todos foram infectados por ela: meninos em idade pré-escolar, adolescentes, moços mais velhos e homens casados." Foi assim que o escritor Mikhail Kolosov descreveu a paixão por pombos que arrebatou o país nos anos soviéticos. Os pombos inundaram a capital e eram usados até como motivo para faltar ao trabalho.

Pombos servindo no exército

Os primeiros columbófilos (como se chamam os amantes dos pombos) surgiram na capital russa há 200 anos, e o primeiro deles a ficar conhecido foi o conde Aleksei Orlov, amante da imperatriz russa Catarina, a Grande. Seus servos criaram uma linhagem especial de pombos brancos. Orlov deu os mais bonitos deles à imperatriz, que ficou interessada por estes pássaros.

Mas, no século 19, a criação de pombos era um privilégio principalmente dos entediados  e abastados proprietários de terras. O hobby se generalizou apenas no início do século 20, quando a Sociedade Russa de Columbofilia e uma rede de estações postais e de pombos entre Moscou, São Petersburgo e as cidades vizinhas foi estabelecida no país. Os pombos participavam da comunicação entre aldeias, e em 1914, havia mais de 4 mil deles no exército russo.

De guerra em guerra

Mas não foi o correio do tsar o catalisador para que a criação de pombos se tornasse um passatempo para milhares de pessoas. A Revolução e a guerra civil praticamente exterminaram todos os pombos: no caos que se instaurou no país, os pombos eram capturados e comidos.

Mesmo então, uma nova reviravolta política voltou a acabar com os pombos: em 1941, um comandante de Moscou ordenou que todos os cidadãos “entregassem seus pombos à polícia em um prazo de três dias, para evitar seu uso por elementos hostis”. O problema é que as aves podiam cair nas mãos do exército alemão. E assim a criação de pombos continuou a ser uma atividade intermitente.

Tudo culpa de Picasso

A verdadeira "revolução dos pombos" aconteceu nos anos 1950 e está ligada ao pintor Pablo Picasso. No verão de 1957, Moscou sediava o 6° Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes - um evento que, pela primeira vez desde a guerra, levantava a cortina de ferro entre a União Soviética e o Ocidente.

Trinta e quatro mil pessoas de 131 países visitaram a URSS na ocasião, e Pablo Picasso, um ávido columbófilo, inventou um símbolo para o festival: a pomba da paz. As aves geralmente eram soltas na cerimônia de abertura como sinal de amizade e solidariedade.

O regime soviético decidiu recomeçar a criação de pombos em 1925, e transformou a atividade em uma questão estatal. Seções de criação de pombos postais foram abertas em toda a União Soviética e o novo país tinha pouco interesse em raças pouco práticas e ornamentais: os soviéticos precisavam apenas de aves resistentes e rápidas. Competições de velocidade e distância eram então realizadas regularmente no Centro Esportivo de Pombos.

Símbolo da Paz

Assim, Moscou precisava de muitos pombos. Mas, após a Segunda Guerra Mundial, quase não havia pássaros na cidade. Portanto, o Partido designou um instrutor especial para a reprodução dos animais, mas empregou ainda esforços gerais – literalmente, todos os soviéticos tinham como missão a reprodução de pombos para a festa, de crianças em idade escolar até professores universitários.

“Os pombos eram criados por toda parte: nos telhados das fábricas de Moscou, em grandes pombais, em escolas e pátios. A partir dos anos 1950, quase todos os quintais tinham seu próprio pombal, pintado de verde ou azul", lembra o historiador moscovita Aleksandr Vaskin.

A mando do Partido, foram construídos pombais em todas as empresas, para os quais designaram criadores amadores dentre os trabalhadores — e esses foram, portanto, dispensados de todas as outras funções. Ativistas urbanos criavam milhares de pássaros nos clubes de bairro, forragem para pombos era vendida nas praças da cidade e algumas ruas principais tinham até uma placa com os dizeres "Cuidado com os pombos" — ali, o limite de velocidade era de 5 km por hora.

Em 28 de julho de 1957, 34 mil pombos voaram para os céus em Moscou durante a abertura do Festival da Juventude. O objetivo foi alcançado.

Maçonaria dos pombos

O voo dos pombos se tornou tradição para todos os grandes festivais e eventos: milhares de pombos foram soltos durante as Olimpíadas de 1980, o Festival da Juventude de 1985, os Jogos da Boa Vontade de 1986 etc.

Mas até a columbofilia ganhou um estereótipo de gênero e passou a ser considerada uma atividade exclusivamente masculina. Os homens então se reuniam nos pombais com bebidas alcoólicas e nenhuma mulher aparecia por lá.

Porém, mesmo no auge de sua popularidade, nos anos 1980, a criação de pombos era considerada uma espécie de excentricidade. Em 1985, estreou nos cinemas soviéticos o filme “Amor e Pombos”, de Vladímir Menchov, que retratava esse fenômeno.

Os criadores de pombos em Moscou eram muitos: eles competiam, tentavam superar seus vizinhos no número de aves, na quantidade de raças raras e na velocidade das aves. Também havia roubos: ou as aves eram retiradas dos quintais ou era enviada uma ave a um pombal de outro proprietário que voltava trazendo outras consigo.

O fim da obsessão por pombos chegou com a queda da URSS. Mas até hoje é possível ver o pombais soviéticos em alguns pátios de Moscou.

 

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