Por que quase todos os quintais da Moscou soviética tinham um pombal?

Moscou, 1961. Formandos de escolas da capital na Praça Vermelha.

Moscou, 1961. Formandos de escolas da capital na Praça Vermelha.

Vladímir Lagrange/TASS
Pombais eram parte integrante do modo de vida soviético. Mas como a criação de pombos tornou-se uma obsessão soviética?

"Foi uma epidemia terrível, longa e incurável, que nem a fome nem a guerra puderam erradicar. Todos foram infectados por ela: meninos em idade pré-escolar, adolescentes, moços mais velhos e homens casados." Foi assim que o escritor Mikhail Kolosov descreveu a paixão por pombos que arrebatou o país nos anos soviéticos. Os pombos inundaram a capital e eram usados até como motivo para faltar ao trabalho.

Pombos servindo no exército

«Голубятня» (бывшая дача графа Орлова), построенная в конце XVIII-начале XIX в. в.

1942 г. Солдат А. Гончаров во время отправки голубя с донесением.

Os primeiros columbófilos (como se chamam os amantes dos pombos) surgiram na capital russa há 200 anos, e o primeiro deles a ficar conhecido foi o conde Aleksei Orlov, amante da imperatriz russa Catarina, a Grande. Seus servos criaram uma linhagem especial de pombos brancos. Orlov deu os mais bonitos deles à imperatriz, que ficou interessada por estes pássaros.

1943 Виктор Васильевич Попов – штурман 263-го истребительного авиационного полка, капитан. /

Mas, no século 19, a criação de pombos era um privilégio principalmente dos entediados  e abastados proprietários de terras. O hobby se generalizou apenas no início do século 20, quando a Sociedade Russa de Columbofilia e uma rede de estações postais e de pombos entre Moscou, São Petersburgo e as cidades vizinhas foi estabelecida no país. Os pombos participavam da comunicação entre aldeias, e em 1914, havia mais de 4 mil deles no exército russo.

De guerra em guerra

Голубятня на Большой Ордынке, 1958 /

Mas não foi o correio do tsar o catalisador para que a criação de pombos se tornasse um passatempo para milhares de pessoas. A Revolução e a guerra civil praticamente exterminaram todos os pombos: no caos que se instaurou no país, os pombos eram capturados e comidos.

Abertura do Congresso Mundial da Paz (1962).

Mesmo então, uma nova reviravolta política voltou a acabar com os pombos: em 1941, um comandante de Moscou ordenou que todos os cidadãos “entregassem seus pombos à polícia em um prazo de três dias, para evitar seu uso por elementos hostis”. O problema é que as aves podiam cair nas mãos do exército alemão. E assim a criação de pombos continuou a ser uma atividade intermitente.

Tudo culpa de Picasso

A verdadeira "revolução dos pombos" aconteceu nos anos 1950 e está ligada ao pintor Pablo Picasso. No verão de 1957, Moscou sediava o 6° Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes - um evento que, pela primeira vez desde a guerra, levantava a cortina de ferro entre a União Soviética e o Ocidente.

Trinta e quatro mil pessoas de 131 países visitaram a URSS na ocasião, e Pablo Picasso, um ávido columbófilo, inventou um símbolo para o festival: a pomba da paz. As aves geralmente eram soltas na cerimônia de abertura como sinal de amizade e solidariedade.

O regime soviético decidiu recomeçar a criação de pombos em 1925, e transformou a atividade em uma questão estatal. Seções de criação de pombos postais foram abertas em toda a União Soviética e o novo país tinha pouco interesse em raças pouco práticas e ornamentais: os soviéticos precisavam apenas de aves resistentes e rápidas. Competições de velocidade e distância eram então realizadas regularmente no Centro Esportivo de Pombos.

1975, URSS. Pombos apresentados em exposição.

Símbolo da Paz

Assim, Moscou precisava de muitos pombos. Mas, após a Segunda Guerra Mundial, quase não havia pássaros na cidade. Portanto, o Partido designou um instrutor especial para a reprodução dos animais, mas empregou ainda esforços gerais – literalmente, todos os soviéticos tinham como missão a reprodução de pombos para a festa, de crianças em idade escolar até professores universitários.

A columbofilia escolar. Anos 1940.

“Os pombos eram criados por toda parte: nos telhados das fábricas de Moscou, em grandes pombais, em escolas e pátios. A partir dos anos 1950, quase todos os quintais tinham seu próprio pombal, pintado de verde ou azul", lembra o historiador moscovita Aleksandr Vaskin.

Pombal em um pátio de Moscou, 1985.

A mando do Partido, foram construídos pombais em todas as empresas, para os quais designaram criadores amadores dentre os trabalhadores — e esses foram, portanto, dispensados de todas as outras funções. Ativistas urbanos criavam milhares de pássaros nos clubes de bairro, forragem para pombos era vendida nas praças da cidade e algumas ruas principais tinham até uma placa com os dizeres "Cuidado com os pombos" — ali, o limite de velocidade era de 5 km por hora.

Placa de rua.

Em 28 de julho de 1957, 34 mil pombos voaram para os céus em Moscou durante a abertura do Festival da Juventude. O objetivo foi alcançado.

Pombos na cerimônia de abertura do 6° Festival da Juventude.

Maçonaria dos pombos

O voo dos pombos se tornou tradição para todos os grandes festivais e eventos: milhares de pombos foram soltos durante as Olimpíadas de 1980, o Festival da Juventude de 1985, os Jogos da Boa Vontade de 1986 etc.

Mas até a columbofilia ganhou um estereótipo de gênero e passou a ser considerada uma atividade exclusivamente masculina. Os homens então se reuniam nos pombais com bebidas alcoólicas e nenhuma mulher aparecia por lá.

Porém, mesmo no auge de sua popularidade, nos anos 1980, a criação de pombos era considerada uma espécie de excentricidade. Em 1985, estreou nos cinemas soviéticos o filme “Amor e Pombos”, de Vladímir Menchov, que retratava esse fenômeno.

Screenshot do filme “Amor e Pombos”.

Os criadores de pombos em Moscou eram muitos: eles competiam, tentavam superar seus vizinhos no número de aves, na quantidade de raças raras e na velocidade das aves. Também havia roubos: ou as aves eram retiradas dos quintais ou era enviada uma ave a um pombal de outro proprietário que voltava trazendo outras consigo.

O fim da obsessão por pombos chegou com a queda da URSS. Mas até hoje é possível ver o pombais soviéticos em alguns pátios de Moscou.

 

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