Sue Dobson, a ativista sul-africana que escapou da prisão graças a agentes soviéticos

Kira Lissítskaia (Foto: Jan Hamman/Foto24/Gallo Images, Keystone/Getty Images)
Quando seu disfarce foi descoberto e Sue estava prestes a ser presa, um desconhecido soviético a salvou. Mas ela nunca teve a chance de agradecê-lo pessoalmente.

Recrutada quando jovem pelo Congresso Nacional Africano, de Nelson Mandela, para espionar o regime de apartheid da África do Sul, Sue Dobson rapidamente subiu na hierarquia e estabeleceu contatos com as principais figuras do governo de minoria branca. Mal sabia ela que em pouco tempo seu disfarce seria descoberto e ela precisaria empregar todas as suas habilidades - adquiridas na URSS - para se manter livre e viva.

Postais direto da Europa

A história de Sue Dobson - que serviu de inspiração para um filme e um livro a ser lançado em breve - começa no início dos anos 1980 na África do Sul, país onde o governo da minoria branca impôs impiedosamente o regime de apartheid e eliminava quem ousasse resistir.

Polícia sul-africana espancando mulheres negras com cassetetes depois de incendiarem uma cervejaria em protesto contra o Apartheid, em Durban

Por meio de sua cunhada, a jovem Sue Dobson, de 20 anos, filha de uma família sul-africana privilegiada e formada em uma escola exclusiva para brancos, entrou para as fileiras do Congresso Nacional Africano, um partido social-democrata então proscrito na África do Sul.

Dentro do partido, ela foi recrutada para o ramo de inteligência e enviada para a União Soviética para aprimorar suas habilidades militares e de espionagem.

“Fui recrutada para o CNA e me encontrei com o chefe da inteligência militar Ronnie Kasrils. Ele me recrutou e sugeriu treinamento militar no que era então a URSS. Minha missão era ser treinada na União Soviética e depois voltar para a África do Sul, onde trabalharia disfarçada em um cargo próximo ao governo. E foi exatamente o que eu fiz”, contou Dobson.

Placa de Apartheid em uma praia perto da Cidade do Cabo, demarcando área apenas para brancos

Para deixar o país por meses sem levantar suspeitas, Sue e seu marido precisavam de um álibi. “O plano foi pensado com muito cuidado. Tínhamos uma história que contávamos para a família e amigos, que íamos mochilar pela Europa e que ficaríamos fora por aproximadamente um ano e depois voltaríamos para a África do Sul e nos estabeleceríamos de vez. Pegamos tantos cartões postais de tantos destinos quanto possível. E escrevemos esses cartões postais, que eram postados por oficiais soviéticos em vários países da Europa Ocidental e enviados para a África do Sul, de modo que parecesse que os enviamos a partir desses destinos, enquanto na realidade estávamos em Moscou fazendo nosso treinamento.”

Depois de a fase de preparação ser concluída, o casal estava pronto para partir.

Casa segura na rua Górki

No outono de 1985, o casal desembarcou no aeroporto Sheremetyevo, em Moscou, então capital da União Soviética - país que liderava o bloco socialista e que, na época, se autoproclamava campeão da igualdade racial. Em meio à Guerra Fria, a URSS apoiava o CNA não apenas por causa da luta do partido pela igualdade racial na África do Sul, mas também porque ajudar a acabar com o governo de minoria branca antissoviética no país fortaleceria Moscou para estabelecer um importante reduto no continente africano.

Para a jovem idealista Dobson, que acreditava piamente na causa do CNA, a União Soviética parecia a terra prometida onde reinava a igualdade racial e a justiça social.

“Fomos ensinados [na escola] que a União Soviética era algo muito diferente, que era muito ruim. E fiquei surpresa com o quão comum era e como as ruas eram bonitas. Era a época da perestroika e glasnost, e Gorbatchov era muito popular na época. Foi muito interessante ver pessoas comuns nas ruas se manifestando pela paz, algo que eu nunca tinha visto antes. Na época, isso me ofereceu uma visão nova da humanidade”, acrescentou Dobson.

Manifestantes sul-africanos em Soweto usam carros como bloqueios durante tumultos decorrentes de protestos contra o uso de africâner nas escolas

De tão impressionada com o que viu, acabou se identificando como comunista na época.

“Desde a queda da União Soviética e a desintegração do bloco oriental, houve muitas coisas que as pessoas passaram a reconsiderar. Algumas coisas são melhores na teoria do que na prática e não necessariamente sabemos disso. Mas, vindo de uma situação como a minha, eu acreditava que a URSS oferecia uma alternativa melhor para o povo da África do Sul do que aquela que eles tinham naquele momento. Acho que me descreveria como comunista.”

Enlutados acenam com réplicas de armas de madeira e cantam em apoio ao banido Congresso Nacional Africano no funeral dos militantes do CNA mortos em Queenstown, na África do Sul

Logo após a chegada, Dobson e seu marido foram acomodados em um esconderijo na rua Górki (atual rua Tverskaya), a poucos passos do Kremlin e da Praça Vermelha. Pelos próximos sete meses, o casal passaria por um extenso treinamento militar e de inteligência liderado por instrutores soviéticos com o objetivo de aprimorar as habilidades de espionagem e sobrevivência dos agentes secretos do CNA dentro do governo sul-africano.

“À medida que meu treinamento progredia, era importante para mim adquirir [técnicas de] vigilância e contravigilância. Era importante entender como manter a vigilância a pé, em um carro, como as equipes de vigilância mudam. Haveria uma equipe de vigilância de talvez cinco ou seis pessoas e minha tarefa seria identificar essas pessoas usando o máximo de técnicas possível: atravessando a rua, parando repentinamente para perguntar as horas a alguém e ver quem está atrás, entrando e saindo do transporte público. Muitas coisas foram ensinadas para nos tornarmos mais vigilantes. Também houve treinamentos de explosão, trabalho de rádio, instrução política, armamento - foi um curso completo. Mais tarde, essas coisas realmente salvaram minha vida”, disse Dobson.

Quando chegou a hora de deixar Moscou, Sue Dobson voltou para sua terra natal, a África do Sul, como agente treinada. Mal sabia ela que as habilidades e contatos adquiridos durante sua estada na União Soviética logo seriam úteis quando seu disfarce fosse descoberto.

Encurralada em Gaborone

Ao retornar à África do Sul em 1986, Dobson trabalhou para um jornal de Pretória, antes de ser contratada pelo gabinete de informações do Estado, onde obteve informações valiosas sobre os planos do governo sul-africano - entre elas, por exemplo, sobre como desacreditar a Organização do Povo do Sudoeste Africano (SWAPO), da Namíbia.

Crachá de Sue Dobson no gabinete do governo sul-africano

Apesar de sua crescente importância como ativo de inteligência do CNA, Dobson nunca teve uma rota de fuga caso seu disfarce fosse descoberto.

“Dependia de mim e do meu treinador estabelecer uma rota segura, criar um plano B. Infelizmente, isso nunca aconteceu, porque Ronnie [Kasrils] nunca providenciou isso. Essa foi uma lacuna. Eu não tinha documentos, não tinha dinheiro, nem casas seguras, nenhum lugar onde pudesse me refugiar. Essa foi uma falha grave por parte do meu treinador e da minha organização. Isso não deveria ter acontecido”, disse Dobson.

Trabalhando como agente secreta do CNA nas fileiras do gabinete de informações, Dobson tinha acesso a membros do Parlamento e ministros. Com o tempo, a jovem profissional, que não levantava suspeitas, foi considerada para um cargo no gabinete do presidente Frederik Willem de Klerk, um emprego dos sonhos de qualquer agente de inteligência do CNA. No entanto, o cargo exigia outro nível de autorização de segurança e uma verificação de antecedentes mais completa, o que acabou revelando as conexões da agente com o CNA. 

Sue Dobson foi “queimada”, isto é, exposta como espiã.

Jovens da cidade de Soweto ajoelhados em frente à polícia com as mãos para o alto mostrando o símbolo da paz, em junho de 1976

Encurralada e abandonada à própria sorte contra todo o poder do governo sul-africano, Sue não teve outra escolha a não apostar todas as fichas. Seu plano foi escapar da África do Sul e entrar em contato com a embaixada soviética na vizinha Botsuana.

“Tive que sair de uma situação muito difícil. Se eu não tivesse o treinamento, provavelmente não teria sido capaz de fazê-lo. Na verdade, eu estava trabalhando na Namíbia na época em que percebi que meu disfarce havia sido descoberto. Eu precisava ir para o exílio o mais rápido possível, para me salvar. Mas eu não podia pegar um voo, porque eles estariam esperando que eu pegasse um voo da Namíbia para a Europa. O que fiz foi alugar um carro e dirigir até lá, algo que eles não esperavam que eu fizesse. Suponho que o que o treinamento na União Soviética fez foi me ensinar a pensar fora da caixa”, disse Dobson.

Quando chegou a Botsuana, ela percebeu que estava sendo observada e que era apenas uma questão de tempo até que os agentes do governo sul-africano conseguissem prendê-la.

“Eu sabia que estava sob vigilância. Eu estava chegando em Gaborone quando percebi. Havia um carro sul-africano na minha cola. Percebi que estava chegando perto de um ponto em que provavelmente me prenderiam. Consegui chegar a um hotel, um Holiday Inn em Gaborone. Peguei um quarto, subi as escadas, chequei a vigilância, notei que o carro estava estacionado no estacionamento, junto ao meu. Percebi que não tinha muito tempo. Peguei a lista telefônica e procurei o número da missão soviética, tendo em mente que não havia plano B. Não tinha instruções sobre o que fazer se as coisas dessem errado. Já era tarde da noite. Aproveitei a chance e só esperava que alguém respondesse. E eles o fizeram.”

“Eu os cumprimentei em russo. Expliquei quem eu era, falei sobre o perigo e depois disse: ‘Por favor, vocês poderiam me ajudar, porque ninguém mais foi capaz de me ajudar?’. O homem ao telefone disse: ‘Encontre-me lá embaixo em 20 minutos’. Foi isso que eu fiz. Saí pela porta dos fundos do hotel e esperei. Um carro se aproximou de mim e alguém me disse para entrar. Eu não sabia se era ele, eu estava assumindo o risco. Ele se identificou e ouvi seu sotaque. Ele era russo. Então ele me levou ao complexo soviético em Gaborone”, disse.

Dobson ficou dentro do complexo soviético por alguns dias antes que os russos a colocassem em um avião para Londres.

“Eles me colocaram em um voo para o Reino Unido. Mas foi bem no último minuto. Pouco antes de o portão fechar, eles me empurraram para dentro. Houve um acordo com a segurança do aeroporto. Lembro-me de meu amigo russo falando com o homem no portão e eles me fizeram passar. Consegui chegar com segurança ao Reino Unido”, contou.

Dobson disse ter escolhido Londres como seu destino pois o local havia sido previamente discutido com seu treinador. Se tivesse recebido asilo na URSS, poderia ter reconsiderado.

Sue Dobson

“Achei que deveria ir para o Reino Unido, mas, se o convite tivesse sido feito, eu teria ficado muito tentada a ir para a URSS”, disse.

Atualmente, Sue Dobson tem uma vida tranquila no Reino Unido. Embora tenha visitado sua terra natal anos depois, nunca teve a chance de retornar a Moscou ou agradecer pessoalmente a seus instrutores e ao diplomata soviético que veio em seu socorro em Botsuana. Ela espera agora que, ao divulgar sua história, essas palavras cheguem até eles.

Sue Dobson

“Quero agradecer a todas as pessoas que me treinaram, que cuidaram de mim e que me salvaram. Porque elas fizeram uma grande diferença na minha vida. Eu não teria sido capaz de fazer as coisas que fiz ou ter a vida que tive sem essas pessoas. Sou imensamente grata a elas.” 

Em breve, no entanto, a história de Sue Dobson será finalmente contada, tanto em livro quanto em filme. A ex-agente acredita que esta será uma importante contribuição para a história sul-africana. Quanto aos seus sentimentos pela Rússia, Dobson ainda ama o país que desempenhou um papel crucial em sua vida, por mais curta que tenha sido sua permanência em Moscou. “Eu teria adorado voltar. Eu ainda gostaria de voltar”, concluiu.

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