“Colocaram-nos em um carro, deixaram minha mãe na prisão ‘Kresti’ e nos levaram a um centro de acolhimento de crianças. Eu tinha 12 anos e meu irmão, oito. Em primeiro lugar, rasparam nossas cabeças, penduraram uma plaquinha com um número em nosso pescoço e tiraram nossas impressões digitais. Meu irmãozinho chorava muito, mas eles ainda por cima nos separaram e não nos deixavam nos encontrar ou conversar”, conta Liudmila Petrova, de Leningrado (hoje São Petersburgo), relembra o episódio de 1938 em entrevista ao Museu da História da Gulag. Ela e o irmão eram culpados simplesmente porque seus pais sofriam repressão.
Filhos dos "inimigos do povo"
Em 1937, o chefe do Comissariado do Povo de Assuntos Internos (NKVD), Nikolai Iejov, um dos organizadores do Grande Terror, assinou a ordem "Sobre a operação para a repressão de esposas e filhos de traidores da Pátria". Assim, as mulheres de "traidores da pátria" estavam suscetíveis a detenção por 5 a 8 anos nos campos de trabalhos forçados. Seus filhos com idades entre 1,5 ano e 15 anos eram enviados a orfanatos.
Segundo dados do Museu da História da Gulag, pela ordem de Iejov, um total de 18 mil esposas de "traidores" presos foram enviadas a prisões e campos de trabalhos forçados, e mais de 25 mil crianças colocadas em orfanatos.
Aqueles que passaram por essa enorme provação se lembram que os orfanatos, lotados, os alimentavam tão mal que precisavam buscar comida no lixo. Muitos adoeciam e morriam, e os que sobreviviam passavam por castigos físicos.
Os educadores dos orfanatos eram instruídos a monitorar de perto os filhos dos “inimigos do povo”, a fim de "revelar e suprimir a tempo sentimentos e ações antissoviéticas e terroristas".
Na sociedade soviética, fazia-se sobre os familiares dos reprimidos uma enorme pressão psicológica: os amigos se afastavam, tanto crianças, como adultos. Até os filhos de altos funcionários tornavam-se párias da noite para o dia e eram transferidos de apartamentos luxuosos para orfanatos. Mira Uborevich, filha de um comandante do exército que foi executado, relembrava: “Estávamos frustrados, amargurados. A gente sentia que era criminoso.”
Embora essas crianças pudessem entregues aos parentes, isso exigia muita burocracia, e muitas famílias não conseguiam fazer isso a tempo. Também havia quem temesse levar as crianças, já que isso poderia atrair muita atenção e suspeita sobre eles próprios e suas próprias famílias.
Crianças "socialmente perigosas"
Uma categoria separada entre os filhos dos reprimidos era a das "crianças socialmente perigosas" que, de acordo com a ordem de Iejov, deveriam ficar presas em campos de trabalhos forçados, instituições correcionais ou orfanatos de "regime especial".
Um deles era Piotr Iakir, de 14 anos, que se recusou a considerar o pai, que foi executado, como criminoso e por isso foi exilado e, mais tarde, condenado a cinco anos em uma colônia penal por acusações falsas. No total, ele passou 17 anos nos campos e só foi libertado aos 31 anos de idade.
“Pelo que contavam, entendi que o que estavam aprontando em Astrakhan estava acontecendo em todo o país, ou seja, inocentes estavam sendo presos, espancados e humilhados sob interrogatório”, disse Iakir mais tarde no livro “Infância na prisão”.
Os menores de idade que acabaram nos campos, muitas vezes iam para celas com criminosos adultos, eram intimidados e espancados. Em “O Arquipélago Gulag”, Aleksandr Soljenítsin escreveu que as concepções sobre o mundo e o bem e o mal desses meninos estavam deformadas e eles tinham “trejeitos ousados e insolentes”, porque esse era “o melhor comportamento para sobreviver nos campos”.
“Dezenas de milhares de crianças reprimidas passaram pelos campos, e a maioria delas não conseguiu retomar uma vida normal, caindo no submundo do crime”, escreve Tatiana Polianskaia, pesquisadora do Museu da História da Gulag em um artigo acadêmico intitulado “Crianças socialmente perigosas. O terror contra as famílias dos ‘traidores da Pátria’”.
Crianças nascidas nos campos
As crianças nascidas na Gulag quase sempre eram imediatamente retiradas de suas mães. Muitos campos de trabalhos forçados, havia barracões especiais ou orfanatos que abrigavam tanto as crianças nascidas no campo como as que tinham chegado com mães condenadas (era permitido retirar das mães as crianças com menos de 1,5 ano).
A sobrevivência dessas crianças dependia do clima local onde o acampamento ficava, da duração da pena e, o mais importante em muitos casos, da relação dos funcionários do campo, educadores e enfermeiras com as crianças.
“Os maus tratos às crianças levava a surtos frequentes de epidemias e altas taxas de mortalidade, que ao longo dos anos variavam entre 10% e 50%”, escreve Polianskaia.
No projeto “Minha Gulag”, o Museu da História da Gulag reúne as memórias de ex-prisioneiros de campos, entre eles, crianças. Valentina Jukova conta que nasceu em um campo, em 1946, depois que a mãe engravidou do supervisor do campo. Em 1951, Valentina foi enviada do campo para um orfanato. Embora sua mãe tenha sido libertada um ano depois, Valentina foi levada do orfanato pelo pai, e ela conheceu a mãe só em 2015.
Gueórgui Karetnikov conta que passou os primeiros oito anos de sua vida em um varracão infantil. Ele nasceu em 1938, no campo de Akmola, para esposas de “traidores da pátria”. Ele suspeita que, quando sua mãe foi presa, ela ainda não sabia que estava grávida. Ainda recém-nascido, Geórgui foi levado embora imediatamente. Ele conheceu a mãe só no dia de sua libertação, em 1946. Entçao, seu pai já havia assinado um formulário renunciando a sua custódia e eles se conheceram já adultos e não conseguiram se aproximar.
Muitas crianças separadas dos pais lembram que o reencontro não trouxe nenhuma alegria. Eles chamavam os educadores de “mãe” e, ao conhecer suas mães verdadeiras, não houve abraços e lágrimas, mas frieza e um desconcerto, sem criar vínculos.
Os filhos da Gulg lutam por justiça
Após a libertação, os ex-prisioneiros dos campos não tinham o direito de morar nas grandes cidades e tiveram que se estabelecer a pelo menos 100 quilômetros de distância. Encontrar trabalho também era um problema. Muitas vezes, eles eram forçados a alugar um quartinho modesto ou apenas uma cama em um dormitório.
Muitos deles não tinham dinheiro nem para viajar de volta ao local de nascimento e acabaram ficando no povoado mais próximo do campo de trabalhos forçados. Depois de passar toda a vida na região de Iaroslavl, Lídia Tchiurinskiene só soube quando adulta que tinha nascido em Leningrado e detida com a mãe quando criança. Pouco depois, ela foi levada para um orfanato. Hoje casada, ela não contou nem mesmo ao marido ou aos filhos ter estado em um campo de trabalhos forçados. Obviamente, ela também não queria que as pessoas no trabalho soubessem.
Mesmo que uma pessoa conseguisse voltar ao local de nascimento, muitas vezes descobria que o apartamento da família tinha sido confiscado e cedido a outras pessoas.
Em 1991, foi aprovada a lei “Sobre a reabilitação das vítimas da repressão política”, que reconheceu os filhos das vítimas da repressão como vítimas e, finalmente, concedeu-lhes o direito de retornar a seu lugar de nascimento. Mais tarde, acrescentaram à lei que as crianças nascidas nos campos podiam se candidatar a alojamento na cidade onde os seus pais viviam antes de serem detidos.
No entanto, do ponto de vista burocrático, o procedimento de “voltar para casa” é extremamente complexo. É preciso reunir “certificados de reabilitação” e muitos outros documentos. Depois, o requerente deve se registrar no novo local de residência proposto e cada local (república ou região) da Rússia tem suas próprias leis, procedimentos e listas de espera para acomodação gratuita. Dessa forma, o processo pode se arrastar indefinidamente, às vezes por décadas.
As irmãs Alisa Meissner, Elizaveta Mikhailova e Evguênia Chasheva, todas nascidas no exílio, tentam há muitos anos, sem sucesso, retomar o direito de morar em Moscou.
Ativistas de direitos humanos e advogados apoiam a causa delas e fazem o possível para obter indenizações às vítimas da repressão antes que seja tarde demais — Elizaveta, por exemplo, já tem mais de 70 anos. O objetivo é que essas indenizações sejam proveniente não dos orçamentos regionais, mas do federal, como no caso de pessoas com deficiência, veteranos da Segunda Guerra Mundial e vítimas de Tchernóbil.
O preparo deste material só foi possível devido à colaboração do Museu da História da Gulag e do Memorial da Sociedade de Direitos Humanos.
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