Como os comerciais chegaram à TV soviética

História
VALÉRIA PAIKOVA
As crianças os adoram. Os adultos os odeiam. O que são? Sim, os comerciais de TV. Na década de 1960, o primeiro comercial de televisão apareceu nas telas da União Soviética e foi nada menos que uma sensação.

Não tinha nada a ver com carrões, batons sexy ou roupas da moda. O primeiro comercial apresentava uma gangue de espiga de milho doce entoando canções para promover hábitos alimentares saudáveis.

“Não havia propaganda comercial na televisão soviética”, explica Liubov Platonova, premiado produtor de TV do canal de artes Rossia Kultura. Naquela época, os comerciais tinham zero impacto sobre os negócios e a cultura da URSS.

“Considerando que a URSS tinha uma economia controlada pelo Estado sem nenhum setor privado, as ferramentas que se aplicam em um mercado livre eram basicamente indesejadas. Além disso, nos dias [de déficit de produtos e alimentos], a questão não era tanto ‘o que comprar’, mas ‘onde e quando’, afinal, não havia sentido em criar publicidade no formato, escala e volume em que existe hoje”, acrescenta Platonova.

O clipe da espiga de milho, com dois minutos de duração, foi ao ar em 1964, durante os anos do chamado degelo de Khruschov. O líder soviético, inspirado pela experiência de grande sucesso dos EUA, queria transformar o país no segundo maior produtor de milho do mundo.

“Eu sou um Kukuruznik [homem do milho]”, disse Khruschov, brincando sobre si mesmo. Seus esforços agrícolas se refletiram naquele primeiro – e histórico – comercial, centrado em personagens peculiares e um chef de meia-idade, dublado pelo aclamado ator Ivan Rijov.

“Se você quiser ser saudável e chegar aos 100 anos, sua dieta deve incluir milho”, cantava o ator. De acordo com esses anúncios de TV, as donas de casa soviéticas podiam cozinhar qualquer coisa que quisessem usando milho, desde saladas e sopas a pudins e bolos doces – porque uma era certa, “é um banquete suntuoso!”.

Comerciais ‘apenas no papel’

Os raros comerciais de TV foram concebidos como um aspecto visual da propaganda de Estado. “Em geral, os comerciais não promoviam ou vendiam nada além da agenda, da ideologia oficial”, diz Platonova. Eles eram chamados de ‘comerciais’, mas apenas no papel.

Os primeiros anúncios eram bem diferentes dos comerciais modernos. Em primeiro lugar, eram incrivelmente longos e, além disso, frequentemente cruzavam gêneros artísticos.

Além disso, nos anos 1960 e 70, não havia compreensão clara do custo do tempo de exibição, marketing, horário nobre etc., portanto, os comerciais soviéticos eram rodados como filmes. Os primeiros criadores de anúncios tiveram a chance de criar comerciais de 5 minutos, quase como curtas-metragens. “O comercial de milho de 1964 é o melhor exemplo de publicidade soviética. Não é um anúncio, mas sim uma balada, no verdadeiro sentido da palavra.”

Curiosamente, a publicidade apareceu nas telas soviéticas muito antes da economia de mercado do país. A primeira associação de publicidade foi lançada no início dos anos 1970 no Estúdio de Filme Documentário em Leningrado (atual São Petersburgo).

Os comerciais eram, de tempos em tempos, encomendados por ministérios e fábricas soviéticas, com anúncios exibidos nos cinemas antes das sessões e, ocasionalmente, na TV.

Mas, afinal, o que era anunciado?

As mulheres aumentaram o volume para ver o anúncio da máquina de lavar de fabricação soviética ‘Viatka’ que estreou na TV no final dos anos 1970.

A voz feminina dizia, com toda seriedade, que um dispositivo tão avançado e de última geração seria “uma agradável surpresa para as donas de casa”.

Um anúncio de poupança do Banco do Estado da URSS (Gosbank) girava em torno de uma bela mulher correndo por Moscou no intervalo do almoço. A personagem Macha (interpretada pela futura estrela do filme ‘Tripulação’, Aleksandra Iakovleva) tem um milhão de coisas para fazer – desde consertar suas botas até comprar vegetais para o jantar.

A mulher ocupada entra no banco em sua cruzada final antes do fim do almoço, reconhece uma amiga que é funcionária e começa a reclamar das batalhas diárias que enfrenta.

- Oh meu Deus, Tania, estou com tanta pressa o tempo todo ... Eu preciso cozinhar, limpar, cuidar da casa, das crianças... Estou ficando sem fôlego ... Você sabe o que quero dizer ...

- Não, eu não. Eu trabalho em turnos. Tenho tempo para cozinhar, passear com meu filho e fazer manicure. Eu trabalho perto de casa e meu dia no escritório começa às 10 da manhã.

- Bem, parece que seu trabalho é o paraíso.

- Paraíso ou não, eu gosto. Os salários aqui não são ruins, além do bônus. Então, pense nisso. Se optar por trabalhar na caixa econômica, você se livrará de muitos problemas.

O vídeo de quase 4 minutos foi ao ar no final dos anos 1970 e costumava ser exibido antes das sessões de cinema e, de vez em quando, nas telinhas.

Na década de 1980, os anúncios de televisão eram uma mistura de realismo e idealismo.

Um dos comerciais, com música alegre, destacava um regulador de tensão.

Outro vídeo mostrava um grupo de homens russos sérios. O narrador informava que eles estavam ali por um motivo, para mostrar seus elegantes ternos feitos de... estofados.

Um dos comerciais mostrava também um gravador de fita cassete em miniatura.

“Música para um... e para dois”, dizia a voz, romanticamente.

No final da década de 1980, a norte-americana Pepsi surgiu em um comercial de TV de uma fábrica de refrigerantes perto de Tachkent, a capital do então Uzbequistão soviético. Artistas de teatro, modelos profissionais e uma banda de rock local participaram das filmagens.

Naquela época, a URSS já estava a caminho de abraçar uma economia de mercado livre e a principal mensagem nos anúncios da Pepsi era, antes de mais nada, ideológica: destacar que um dos principais símbolos da cultura ocidental estava agora disponível para os soviéticos.

Na década de 1990, após a queda da União Soviética, o país passou por diversas transformações, e a televisão também precisava de reforma. Os comerciais estrangeiros começaram a invadir a televisão russa. A duração dos vídeos foi drasticamente reduzida, para que uma série de pequenos anúncios comerciais aparecessem em um determinado intervalo de tempo. Assim, a Rússia acabou se tornando um país onde tempo também é dinheiro.

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