Por que os tsares russos adoravam loucos?

História
GUEÓRGUI MANÁEV
Nus, sujos e sempre murmurando orações, eles podiam ofertar carne crua ao tsar, chamá-lo de sanguessuga e ainda assim ser convidados para um banquete real em seguida. Seus poderes “sobrenaturais” inspiravam a admiração tanto de nobres, como de camponeses.

Quando, em 1570, o tsar Ivan, o Terrível, se aproximou da cidade de Pskov com seu exército, seu plano era punir brutalmente os habitantes locais por suas repetidas tentativas de desobedecer a Moscou. Os residentes de Pskov, esperando um terrível massacre, saíram para encontrar Ivan, cumprimentando-o com pão e sal – uma tradição russa na recepção de visitas.

Então, de acordo com as crônicas, algo estranho aconteceu. Um homem nu, coberto de sujeira, deu um passo à frente na multidão e entregou um pedaço de carne crua ao tsar, dizendo: “Ivachka acha que comer um pedaço de carne de animal durante o jejum é pecado, enquanto comer tanta carne humana como ele já comeu, não há pecado?”

Aquele “iurôdivi” medieval, ou seja, “louco por Cristo”, estava se referindo às atrocidades cometidas pelo tsar Ivan, enquanto submetia cruelmente outras cidades russas ao governo de Moscou.

Quem poderia ser rude com o tsar e fugir impune? Apenas um “louco por Cristo” como Nikolai Salos de Pskov (cuja alcunha “salos” provém do grego e significa “tolo sagrado”). Reza a lenda que esse gesto salvou a cidade de Pskov das represálias do tsar. Ivan, o Terrível, envergonhou-se de sua crueldade e deixou o local.

Loucos por Cristo na Rússia antiga

Os loucos por Cristo, também conhecidos como “santos tolos”, “tolos sagrados” ou “tolos abençoados”, existiam desde a Grécia Antiga (o mais famoso deles foi Diógenes de Sinope, que vivia em um barril), assim como em países muçulmanos (Sufis), na Índia (bhakti yogis), Regiões budistas (nyonpa yogis).

E em todo lugar eles tinham características que lhes eram peculiares. Na tradição ortodoxa oriental, eles eram chamados de "iurôdivi" ou "pokhab". Não é por acaso que a palavra "yurôdivi" se assemelhe tanto à palavra “urôd” (aberração). Seu comportamento, porém, não é o resultado de doença mental, mas de excessos religiosos.

Daí a diferença entre “santos tolos” e “bobos da corte”: os últimos se comportam de maneira cômica e provocativa apenas durante as festividades, enquanto os primeiros permanecem em estado de êxtase, loucos por toda a vida.

O conceito de loucura por Cristo chegou à Rússia a partir de Bizâncio. O primeiro tolo santo conhecido na Rússia foi Isidoro, que viveu em Rostov na segunda metade do século 15. Seu apelido era Tviordislov (algo como “palavra dura”), provavelmente em referência ao fato de ele repetir constantemente a mesma palavra ou frase. Isidoro vivia em um pântano e se cobria com folhas de árvores. Dizia-se que ele expunha o poder principesco. No século 16, ele foi declarado santo postumamente.

A loucura por Cristo tornou-se mais popular na Rússia no século 16. Reza a lenda que o “santo tolo” Arkádi de Viazma, por exemplo, tinha a capacidade de ver cobras se escondendo em jarros e panelas e "exorcizá-las", quebrando as panelas.

Em Rostov, havia Ioann Vlasati e, em 1547 foi proclamado santo Maksím de Moscou, um “santo tolo” que era conhecido por andar nu um século antes. Muito pouco se sabe sobre sua vida, porém.

O “santo tolo” mais famoso de Moscou, Basílio, o Abençoado ou Basílio, o Louco por Cristo, que rendeu nome à Catedral de São Basílio, na Praça Vermelha, também andava nu. Sua história de vida é uma amálgama de todas as histórias clássicas sobre os “santos tolos”: ele andava nu, furioso, pelas bancas dos comerciantes, quebrando panelas e pratos e, é claro, advertia o tsar por sua crueldade.

Pode-se dizer que os santos tolos procuravam imitar a Cristo, que usava trapos, pregava a seus seguidores e era perseguido por quem estava no poder.

O próprio tsar Ivan promoveu a loucura por Cristo e os “santos tolos”. Ele ajudou a carregar o caixão de Basílio, o abençoado, e foi durante seu reinado que Procópio e Ioann de Ustiug e Maksím de Moscou foram reconhecidos como santos.

Como primeiro tsar de Moscou, ele buscou mostrar sua devoção e religiosidade: de acordo com a tradição ortodoxa grega, os “santos tolos” eram considerados os religiosos mais verdadeiros e mais altruístas. Assim, para Ivan, essas ações eram um elemento de sua política religiosa e social.

Santos ou vigaristas?

A loucura por Cristo floresceu na Rússia sob o reinado do filho de Ivan, o Terrível, Fiódor 1° (1557-1598), um governante devoto e quieto. Imediatamente após Fiódor subir ao trono, milagres começaram a acontecer no túmulo de Basílio, o Abençoado, e em 1588, ele foi canonizado e enterrado no cemitério da Catedral da Intercessão, que a partir de então ficou conhecido como Catedral de São Basílio.

Curiosamente, a canonização de Basílio, o Abençoado, foi programada para coincidir com a visita a Moscou do Patriarca de Constantinopla, Jeremias: ao canonizar o “santo tolo”, o tsar de Moscou e as autoridades da Igreja queriam impressionar o ilustre convidado com sua piedade.

Mas, onde há santos, também há pecadores. Já na década de 1630, as autoridades da Igreja perceberam que o fenômeno da loucura por Cristo era frequentemente explorado por fraudadores. O patriarca Joasaphus escreveu em 1636: "Alguns fingem ter uma mente débil e depois são vistos totalmente sãos".

Em 1646, ele proibiu os “santos tolos” de entrar nas igrejas porque "seus gritos e chiados impedem os religiosos de ouvirem o canto divino". No mesmo período, na percepção das pessoas, os tolos santos "verdadeiros" se misturavam com pessoas de mente fraca e doentes mentais, cuja loucura lhes dava uma auréola de santidade. Essas pessoas começaram a ser chamadas de "blagoiurôdivie", ou virtuosos loucos por Cristo.

Entre o público em geral, a loucura por Cristo tornou-se popular no século 17, quando a maioria das histórias sobre os iurôdivi se tornaram populares. Apesar dos casos de fraude, os “santos tolos” continuavam a ser recebidos em palácios reais.

O padre e cronista ortodoxo grego Paulo de Alepo, filho do patriarca de Antioquia Macarios 3°, que visitou a Rússia em 1654-1656, participou de um banquete com o patriarca Nikon e viu a reverência com que este tratava um “santo tolo”: “Naquele dia, o patriarca colocou sentado a seu lado na mesa um novo Salos, que caminhava nu pelas ruas. Há uma grande fé nele e ele é reverenciado além da medida como santo e homem virtuoso. O nome dele é Cipriano, e as pessoas o chamam de Homem de Deus. O patriarca lhe servia comida o tempo todo com as próprias mãos e lhe oferecia bebida de taças de prata, das quais ele bebia. Além disso, ele recebeu as últimas gotas em sua boca, para a santificação, e assim foi até o final da refeição. Ficamos surpresos."

Rejeição e reavivamento

A surpresa do arquidiácono era compreensível: naquele tempo, a Igreja Ortodoxa Grega considerava quase todos os “santos tolos” vigaristas. Em 1666, Macarios 3° e seu filho Paulo visitaram Moscou novamente para participar do Grande Sínodo de Moscou, que em um cânone especial condenou a falsa loucura por Cristo.

Pouco a pouco, a veneração dos “santos tolos” começou a cair: a partir de 1659, Basílio, o Abençoado, não era mais lembrado na Catedral da Assunção no Kremlin e, em 1682, ele era lembrado apenas na Igreja da Intercessão, onde foi enterrado.

O golpe final contra a loucura de Cristo foi dado por Pedro, o Grande. Ele escreveu: “Esses tolos fazem muito mal à pátria. Que qualquer pessoa prudente considere quantos milhares desses mendigos preguiçosos existem na Rússia. Com sua insolência e fingindo humildade, eles consomem o trabalho de outras pessoas. Sinceramente, não existe ordem de pessoas mais desregrada!”

A partir do início do século 18, a loucura por Cristo passou a ser punível com tortura e prisão. Mas, por muitos anos, vários “santos tolos” e peregrinos vagaram pela Rússia, implorando “pelo amor de Cristo” e explorando a queda russa pela loucura por Cristo.

Durante o reavivamento pós-soviético da fé ortodoxa e da Igreja Ortodoxa Russa, o fenômeno da loucura por Cristo voltou à vida. Em 1988, o Conselho Local da Igreja Ortodoxa Russa canonizou a Beata Ksênia, de São Petersburgo, que viveu ali no século 18. E este não é o único caso da história russa recente.

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