Sacoleiros: eis algo que a Rússia tem em comum com o Brasil

História
ELEONORA GOLDMAN
Quando a Cortina de Ferro caiu, os soviéticos começaram a viajar para o exterior. Mas o que mais os atraía não eram os pontos turísticos, e sim os produtos baratos, que eram tão raros na pátria-mãe. País tem até monumentos a sacoleiros.

Qual a grande realização em comprar um terno ou um par de sapatos? Ainda mais na atualidade, quando há mais shoppings e serviços de delivery do que museus e teatros. Mas, há bem pouco tempo, esses produtos básicos estavam completamente fora do alcance dos habitantes da ex-União Soviética. Eles só podiam comprar o que havia nas lojas estatais, onde tinham que passar horas na fila para adquirir botas iugoslavas, ou no mercado negro.

No final dos anos 1980, a URSS abriu suas fronteiras e começou a permitir o livre comércio. Os “turistas” soviéticos invadiam países estrangeiros, comprando tudo o que encontravam pela frente, de preservativos e batons a salsichas e batedeiras, para revender na terra natal.

Os vendedores ambulantes, ou “tchelnók”, como eram chamados em russo, não carregavam as compras em malas pesadas, mas em enormes sacolas xadrez baratas que se tornaram quase a marca registrada do país.

Alguns anos depois, com o fim da URSS e a grave crise econômica das ex-repúblicas soviéticas, o comércio de mercadorias estrangeiras tornou-se a salvação de muita gente que perdeu o emprego e a estabilidade social que a União Soviética provia.

Economia de mercado

“Na URSS, minha mãe era engenheira e tinha uma renda estável e planos bem definidos para a vida. Então veio a década de 1990, e ela teve uma experiência similar à de milhares de outras pessoas: perdeu o emprego, virou sacoleira e depois voltou à vida normal. Ela se lembra dos anos 1990 como os primeiros em que podia respirar livremente e começar a fazer planos para o futuro. Mas nem todos os seus conhecidos sobreviveram àquela época”, escreve um usuário russo em um fórum de discussão on-line.

Após a queda da URSS, muita gente acabou desempregada. Muitas vezes, as empresas estatais simplesmente não tinham dinheiro para pagar os salários dos funcionários e, em vez disso, pagavam com os produtos que fabricavam.

Dado o enorme número de cidades e aldeias que tinham apenas um grande empregador, isso era um enorme problema. Professores, médicos e engenheiros foram forçados a buscar novas formas de ganhar dinheiro. Para muitos, isso se resumia à venda de produtos importados.

As coisas eram um pouco mais fáceis para quem vivia nas áreas de fronteira. Moradores da Ucrânia, da Bielorrússia e da parte ocidental da Rússia podiam viajar para Polônia, Alemanha, Tchecoslováquia e, de lá, para o resto da Europa. Já os moradores da região de Leningrado podiam ir para a Finlândia, enquanto aqueles que viviam no Extremo Oriente russo traziam mercadorias da China.

Mas o principal destino dos sacoleiros soviéticos era a Turquia. A qualidade dos produtos turcos na década de 1990 era – como ainda é, em muitos casos – excelente. Os tecidos, sapatos e cosméticos turcos duravam muitos anos e eram baratos.

As pessoas carregavam tudo o que podiam. Ninguém pensava em excesso de bagagem e, além disso, as companhias aéreas não tinham regras tão restritivas e dispendiosas na época. Às vezes, aliás, as malas não cabiam todas no compartimento de bagagem e, por isso, os passageiros as levavam no corredor. As tripulações eram compreensivas e, por vezes, elas próprias faziam suas transações paralelas.

Surgiu então na Rússia um novo tipo de negócio turístico especializado na organização de “passeios de compras”: grupos de comerciantes sacoleiros eram levados de uma área de fronteira por balsa, trem ou ônibus, levados a armazéns, fábricas, lojas e outros lugares onde podiam comprar tudo de que precisavam a granel, e depois eram levados de volta para casa.

Por sua própria conta e risco

Um tour de compras pode parecer divertido, mas a realidade da vida dos sacoleiros era difícil. Eles tinham que arranjar dinheiro para viajar e comprar as mercadorias (na maioria das vezes, pegavam emprestado de amigos e familiares), carregar enormes malas pesadíssimas e, depois, vender o que tinham comprado em mercados ao ar livre, independentemente do clima. E o lucro que obtinham podia ser minúsculo.

Na década de 1990, ainda havia restrições à quantidade de moeda estrangeira que podia ser transportada das ex-repúblicas soviéticas para o exterior. Quem saía da Rússia, por exemplo, não podia levar mais de US$ 700. É por isso que os sacoleiros geralmente levavam artigos que podiam vender no exterior (como câmeras soviéticas, joias e bebidas alcoólicas) e usavam o dinheiro arrecadado para comprar a mercadoria que venderia na terra natal.

“Muitos de nós levávamos chapéus soviéticos para a China. Cada um custava sete rublos, e os chineses trocavam de bom grado dois chapéus por um par de botas, que podiam ser vendidas no Lujnikí por 2.000 rublos”, lembra um ex-sacoleiro chamado Andrêi.

“Na época, passávamos pela alfândega usando sete chapéus e três casacos, um por cima do outro. Os funcionários da alfândega ficavam zangados, mas dizíamos somente ‘Estou com frio’, e eles não podiam fazer nada.”

Havia até mesmo quem levasse assistentes consigo para que poder carregar mais dinheiro para fora do país.

Os produtos importados eram vendidos nos mercados. Todas as cidades grandes tinham pelo menos um desses mercados, se não mais, e lá era possível encontrar tudo o que se buscasse.

Em Moscou, os mais famosos eram o Lujnikí (todas as arquibancadas sob o estádio esportivo tinham sido transformadas em barracas), o Tcherkízovski e uma dúzia de outros menores. E não eram só clientes comuns que iam aos mercados de Moscou, mas também revendedores provenientes de outras partes do país.

Para esses lojistas de outras regiões, era mais barato levar mercadorias da capital que viajar ao exterior para obtê-las. Foi também nesses mercados que imigrantes das repúblicas da Ásia Central começaram a chegar em grande número para vender mercadorias, em meados da década de 1990.

Monumentos aos sacoleiros

Com o tempo, o comércio sacoleiro tornou-se cada vez menos lucrativo. Os governos introduziram novas regras alfandegárias, as companhias aéreas reduziram as permissões de bagagem e as prefeituras locais buscaram controlar mais os grandes mercados, que muitas vezes eram um terreno fértil para o crime e doenças.

Então, em 1998, iniciou-se uma crise econômica, o rublo caiu e muitos empresários que tinham dívidas em dólares foram à falência. No início dos anos 2000, começaram a surgir shopping centers nas cidades russas, inclusive grandes redes estrangeiras. Os vendedores ambulantes foram substituídos por grandes empresas e os mercados começaram a ser demolidos.

É difícil calcular o volume movimentado pela economia dos sacoleiros, já que ninguém mantinha registros precisos, mas há estimativas de que, em meados da década de 1990, ela representava até um terço de todas as importações do país. O que se sabe ao certo, porém, é que quase 10 milhões de russos trabalharam nesse setor.

O breve, porém importante período da história moderna protagonizado pelos sacoleiros se reflete até mesmo em monumentos, que se tornaram marcos populares em diversas cidades russas. Geralmente perto de shopping centers e dos locais que abrigavam os antigos mercados da "selvagem década de 1990", é possível ver sacoleiros eternizados em estátuas.

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