"O homem do meio": Sukhodrév traduz, em junho de 1979, o presidente norte-americano Richard Nixon (esq.) e o líder soviético Leonid Brezhnev (dir.).
Getty ImagesQuando Nikita Khruschov chegou aos EUA, em setembro de 1959, como o primeiro líder soviético a visitar o país, isso causou um enorme rebuliço, já que a Guerra Fria entre as duas superpotências estava a pleno vapor.
Entre os passeios do excêntrico líder soviético, houve um por Los Angeles. Do carro, ele viu jovens norte-americanas vestindo shorts justos, algo que inexistia na União Soviética na época. Ele então se dirigiu ao Embaixador dos EUA na ONU, Henry Cabot Lodge, que o acompanhava, e disse: “Que coisas interessantes que vocês têm aqui! As mulheres andam de calças curtas... Isso não seria permitido com as nossas...”
Depois, ele observou gramados asseados e casas particulares e se disse a Lodge novamente: “Sim, claro, está tudo bem organizado, limpo e as pessoas estão bem vestidas. Mas não importa! Vamos lhes mostrar a mãe de Kuzmá...”
Visita de Khruschov aos EUA.
Vassili Egorov/Getty ImagesFicou sem entender? Pois bem, antes disso, naquele mesmo ano, em 24 de julho de 1959, a “Exposição Nacional Americana” tinha sido inaugurada no Parque Sokôlniki, em Moscou (Tudo sobre esse capítulo imperdível da história das relações americano-soviéticas aqui!). Lá, no calor da discussão, o impulsivo líder soviético Nikita Khruschov dirigiu-se ao então vice-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, com uma expressão “do povão”: “Vamos lhes mostrar a mãe de Kuzmá”, que significa “ensinar uma lição para alguém”.
Diferentemente do que ocorreu no famoso Debate na Cozinha entre Khruschov e Richard Nixon, porém, a fala do líder soviético não pegou Víktor Sukhodrév (1932-2014) de calças curtas. O tradutor, que acompanhou o líder soviético em sua viagem aos EUA, fez muito bem o dever de casa: “Depois do incidente da ‘mãe de Kuzmá’, eu folheei todos os dicionários. Esta partícula expletiva é usada quando não é possível usar uma mais forte. Eu estava buscando um equivalente dessa expressão. Algo como ‘Vamos chutar sua cabeça’ ou ‘Vamos mostrar o inferno!’”
O líder soviético Nikita Khruschov ouve seu ministro dos Negócios Estrangeiros Andrêi Gromíko em Nova York, em 10 de junho de 1960. Sentado à esq., Sukhodrév.
Getty ImagesMas, enquanto passeava de carro por Los Angeles, em setembro de 1959, e mencionou “a mãe de Kuzmá” novamente, Nikita Khruschov, de repente, virou-se para Sukhodrév e disse: "Quando eu estava na exposição com Nixon, ela [a expressão] foi traduzida incorretamente. É muito simples: ‘Mostraremos algo que você nunca viu’.”
“Por um momento, eu congelei: nunca tinha visto essa interpretação da expressão em nenhum dicionário”, disse Sukhodrév. Khruschov simplesmente inventou um novo significado para a famosa frase folclórica.
Com os anos, o profissionalismo, a perspicácia e o carisma pessoal de Víktor Sukhodrév fariam dele um amigo não só dos líderes soviéticos, mas também de figurões nas Nações Unidas, no Departamento de Estado norte-americano e até na Casa Branca.
Uma feliz coincidência
Em 1979, Víktor Sukhodrév (centro), com Jimmy Carter (esq.), e Leonid Brejnev (dir.).
Getty ImagesEste homem apurado, de cabelos escuros, de pé entre Jimmy Carter e o líder soviético Leonid Brejnev - apareceu em muitas fotos de negociações do alto escalão soviético-americano durante a Guerra Fria.
De certa forma, Víktor Sukhodrév estava destinado a construir carreira nas relações exteriores depois de passar a infância em Londres, onde a mãe era membro da missão comercial soviética.
“No abrigo antiaéreo da missão comercial soviética durante os atentados noturnos em Londres, eu perguntava à minha mãe:‘ Do que as crianças estão falando?’[Mais tarde], brincava com colegas ingleses e me comunicava com eles. Então, sem muito esforço, comecei a falar inglês e até esqueci o russo”, disse Sukhodrév em uma de suas entrevistas.
Visita oficial do presidente norte-americano Richard Nixon (esq.) à URSS. No meio, Sukhodrév, e à dir., Brejnev.
Iúri Abramotchkin/SputnikAo retornar à União Soviética, Sukhodrév falava inglês como um britânico nativo. Ele foi dispensado das aulas de inglês na escola soviética e, posteriormente, ingressou no Instituto de Línguas Estrangeiras, onde estudou também francês.
Uma feliz coincidência ajudou a lançar o homem que logo se tornaria a “tecla SAP” da voz soviética nas relações com seu principal rival na Guerra Fria.
“Em 1955, uma delegação de incorporadores imobiliários [soviéticos] chefiada pelo Ministro da Construção foi para a Inglaterra. Eu estudava com um cara cujo pai trabalhava no Ministério da Construção, e ele contou de mim para o pai: foi assim que eu, aluno do quinto ano, virei membro da delegação. Essa foi a minha primeira experiência como tradutor oficial”, disse Sukhodrév.
Logo Sukhodrév estava no radar do principal intérprete soviético, Oleg Troianovski, que trabalhava com Stálin, Môlotov e Gromíko. Ele buscava um sucessor e aprovou a candidatura do jovem. Posteriormente, Sukhodrév conseguiu um emprego no Ministério dos Negócios Estrangeiros soviético.
‘O homem no meio’
Khruschov (esq.), Sukhodrév (meio) e Kennedy (dir.).
Iúri Abramotchkin/SputnikSukhodrév conheceu o líder soviético Nikita Khruschov em uma recepção oficial, depois de apenas duas semanas trabalhando no ministério. “Lembro-me que, em algum momento, as luzes se acenderam, as câmeras fotográficas começaram a disparar e retratos vivos entraram no corredor: Khruschov, Bulgánin, Môlotov, Kaganóvitch, Mikoian. Eu tinha medo até de imaginar que traduziria para eles. Naquele mesmo dia, gastei quarenta e cinco minutos traduzindo para Khruschov”, disse Sukhodrév anos depois.
O jovem intérprete mal sabia que logo ganharia destaque em ambos os lados da cortina de ferro e seria uma celebridade internacional por seus próprios méritos.
À medida que mais e mais funcionários do alto escalão descobriam o profissionalismo e o dom natural de Sukhodrév para traduzir perfeitamente qualquer coisa do russo para o inglês (inclusive alternando entre a variante americana ou a britânica quando necessário), o intérprete emprestou voz a sete presidentes dos EUA e cinco líderes soviéticos, tornando-se uma figura mais familiar no Departamento de Estado e entre a equipe da Casa Branca do que os chefes soviéticos, em constante mudança.
Para Sukhodrév, a familiaridade muitas vezes se traduzia em confiança, senão em amizade. Por vezes, Richard Nixon permitia que Sukhodrév fosse o único intérprete na sala, sem a participação de um intérprete americano.
Harry Obst, famoso intérprete da Casa Branca que trabalhou para sete presidentes consecutivos, relembrou um caso extraordinário, mas exemplar: “Quando o presidente dos Estados Unidos Gerald Ford foi a Vladivostok para se encontrar com o secretário-geral soviético Leonid Brejnev para conversas sobre controle de armas, em novembro de 1974, Gerald Ford viu Sukhodrév e o cumprimentou como um velho amigo, dizendo ‘Oi, Víktor!’, e, em seguida, passou a apresentá-lo aos membros da delegação norte-americana.”
Apesar da atitude amigável de muitos presidentes dos EUA, Víktor Sukhodrév tinha seu favorito: “Conheci muitos presidentes e primeiros-ministros estrangeiros. Mas fiquei muito impressionado com Kennedy”, disse Sukhodrév, que teve a oportunidade de fazer a interpretação das conversas entre John F. Kennedy e Nikita Khruschov, em Viena, em junho de 1961.
Foi uma admissão um tanto estranha, já que o próprio Kennedy se recordava das conversas como um desastre: “Foi a pior coisa da minha vida”, disse Kennedy mais tarde a um repórter do The New York Times. “Ele [Khruschov] me agrediu.”
Talvez, o desejo de Kennedy de impressionar o líder soviético mais velho e experiente simplesmente tenha saído pela culatra com o intérprete de Khruschov, que estava impressionado com o recém-eleito presidente dos EUA.
Ao longo de sua extensa carreira como intérprete do alto escalão, Sukhodrév conheceu pessoalmente tantas pessoas poderosas do século 20, que poucos outros homens superaram seu recorde. Ele se encontrou com a ex-premiê da Índia, Indira Gandhi, o ex-premiê do Canadá Pierre Trudeau, sete presidentes dos EUA e alguns primeiros-ministros britânicos.
No entanto, sua carreira não foi ofuscada pela presença desses poderosos. Sukhodrév se tornou um diplomata internacional por direito próprio, trabalhando como assistente especial do Secretário-Geral da ONU a partir de 1989 e, em seguida, como Diretor da Divisão de Assuntos do Conselho de Segurança, o braço do Conselho de Segurança da ONU.
Viktor Sukhodrév se aposentou em 1994, retornando de Nova York a uma Rússia recém-independente, um país muito diferente do que ele havia deixado para trás.
O renomado intérprete, diplomata e amigo de muitos grandes homens do século 20 morreu em 2014, aos 81 anos, em sua casa, nos arredores de Moscou.
Tanto na Rússia quanto nos EUA houve luto, em um raro momento em que os dois países se uniram para se despedir de seu companheiro mútuo.
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