URSS tomava toda do mesmo copo (e, dizia-se, sem adoecer!)

Dmitry Baltermants / MAMM / MDF / russiainphoto.ru
As icônicas máquinas de água gaseificada soviéticas geravam filas enormes, mas só tinham disponível um ou dois copos. E ninguém desistia de tomar por isso!

As máquinas de venda automática serão para sempre um símbolo da era soviética. Elas estavam em aeroportos, estações de trem, hotéis, cinemas, shoppings e, muitas vezes, na rua.

Muita gente se lembra até hoje do preço e do sabor delas, que tinham uma popularidade estratosférica. Mas elas também tinham uma característica impensável nos dias atuais: ficavam disponíveis nelas apenas um ou dois copos que eram compartilhados pela multidão.

Um por todos

Reza a lenda que a primeira máquina de venda automática da União Soviética tenha sido usada em 1932. "Agrochkin, um operário de fábrica de Vena, em Leningrado, inventou uma máquina interessante. Usando-a, todas as lojas podem produzir sua própria água gaseificada”, lê-se em um artigo do jornal “Vetchérniaia Moskvá” (“Moscou da Noite”). No início da década de 1960, mais de 10.000 dessas máquinas se espalharam por toda a cidade.

Nos primeiros modelos, era possível comprar água gaseificada com sabor adicional por 3 copeques ou sem sabor por um copeque. As opções de sabor eram: pêra, bérberis, “tarkhún” (estragão), “soda cremosa”, “kolokóltchik” (campânula) e outros. Nos anos seguintes, a Pepsi e a Fanta entraram na jogada, mas seu preço era muito maior.

As máquinas funcionavam de maio a setembro, ou seja, no período mais quente russo. No inverno, elas ficavam trancadas em caixas especiais de metal. No verão, as filas eram enormes.

Geralmente, chegava a vez de uma pessoa usar a máquina, ela inseria a moeda, selecionava o sabor, colocava o copo embaixo da torneirinha, pegava a bebida, bebia ali mesmo na frente de toda a fila e colocava o copo de volta.

Havia um lugar especial com uma grade embaixo para lavar o copo. Era preciso virá-lo de cabeça para baixo, pressioná-lo com força e um jato de água o lavava por dentro – mas ele era tão fraco que às vezes ainda dava para ver manchas de batom!

As máquinas passavam por uma manutenção periódica, que incluía lavar os copos com água quente e uma solução à base de soda. Mas isso não acontecia todos os dias.

A pergunta que não quer calar é: isso já gerou epidemias de doenças infecciosas na URSS? A resposta é: “óbvio que sim!”. E como! Mas, durante todos os anos em que o sistema esteve em operação, nunca se reconheceu publicamente o vínculo entre as máquinas e a disseminação de doenças infecciosas.

Quão perigoso era o copo?

A União Soviética não divulgava estatísticas de saúde pública para o público interno. Houve epidemias ali que até hoje não tiveram seus dados revelados. Foi o caso do H1N1, apelidado de “gripe russa”: a doença viajou do sudeste da Ásia para a União Soviética em 1977 e acometia predominantemente jovens com idades entre 20 e 25 anos.

Os copos podiam facilmente transmitir vírus. De acordo com Elena Utenkova, professora do Departamento de Doenças Infecciosas da Universidade Estadual de Kirov, “há o risco de infecções respiratórias e, se o indivíduo também tiver herpes inflamada, sua saliva pode transmitir o vírus, por meio de utensílios de cozinha que não tenham sido bem higienizados.”

Infelizmente, nos casos que envolvem infecções "comuns", como retrovírus ou gripe, não há uma grande preocupação com a forma de contágio – se por um copo sujo, mãos sujas etc. Além isso, o sistema de saúde soviético nunca experimentou uma crise epidemiológica, considerado por muitos como o melhor do mundo.

Assim, os soviéticos estavam cientes dos perigo de usar aqueles copos? Alguns, sim. Sempre havia um ou dois na fila portando seus próprios copos. Outros simplesmente proibiam os filhos de chegarem perto de uma dessas máquinas.

Existiam até mesmo lendas urbanas de que os copos podiam passar sífilis. Durante as Olimpíadas de 1980, em Moscou, espalhou-se o boato de que estrangeiros sifilíticos passavam os órgãos genitais nos copos à noite. “O absurdo da história realça os medos relacionados à saúde na sociedade soviética”, diz Aleksandra Arkhípova, chefe do grupo de pesquisa de Floclores Modernos na Academia Presidencial Russa de Economia Nacional e Administração Pública.

O medo soviético do “diferente” facilitou a culpabilização dos estrangeiros pela disseminação de doenças – o engraçado é que o mito se difundiu justamente em torno da sífilis, e não da hepatite, que podia, essa sim, ser transmitida pelos copos.

Fim de uma era

Não foram, porém, as epidemias, mas a queda da URSS que finalmente encerrou a época das máquinas com copos de vidro.

"Nos anos 1990, a empresa ‘Torgmontaj’, que supervisionava a instalação e manutenção das máquinas, simplesmente as abandonou. O sistema entrou em colapso e, com ele, o funcionamento das próprias máquinas. Logo elas se tornaram obsoletas e era possível comprar bebidas gaseificadas em todos os quiosques”, lembra David Gerchzon, pesquisador-chefe do Instituto de Pesquisa Científica da Indústria de Refrigeração da Rússia que esteve por trás do desenvolvimento das primeiras máquinas.

Aleksandr Barannik, então diretor da empresa “Avtomattorg N° 3”, disse, na época, que uma das principais razões para o desaparecimento das máquinas era a inflação. “O mecanismo de processamento de moedas é bastante complexo e alterá-lo várias vezes por ano com uma inflação que sobe tão rápido seria simplesmente inviável”, disse.

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