Quando cientistas soviéticos flutuaram sobre um bloco de gelo por 274 dias

Piotr Chirchov, Ernst Krenkel, Ivan Papanin, Evguêni Fiodorov

Piotr Chirchov, Ernst Krenkel, Ivan Papanin, Evguêni Fiodorov

МАММ/МDF/russiainphoto.ru
Eles foram os primeiros do mundo a entrar nessa missão de desafio à morte. Mau tempo, chuva, nevascas e inúmeras rachaduras foram companheiras na aventura.

O dia 6 de junho de 1937 se tornou um marco importante na história da exploração do Ártico. Foi neste exato dia que os cientistas soviéticos abriram oficialmente a primeira estação de pesquisa à deriva polar do mundo, a Polo Norte-1.

Ivan Papanin, Ernst Krenkel, Piotr Chirchov, Evguêni Fiodorov

Os quatro membros da expedição e seu cachorro Vesseli (Alegre) tornaram-se habitantes temporários de um enorme bloco de gelo de três por cinco quilômetros e pouco mais de três metros de espessura. O objetivo era realizar pesquisas enquanto o bloco de gelo flutuava na direção sul, rumo à Groenlândia. 

Nos anos 1930, explorar o severo ambiente do Ártico era bem mais complicado e perigoso do que na era moderna dos quebra-gelos nucleares. A estação à deriva foi projetada para realizar pesquisas quase o ano todo, o que seria impossível por quaisquer outros meios. Os cientistas da Polo Norte-1 ficaram encarregados de realizar observações meteorológicas, coletar dados hidrometeorológicos, hidrobiológicos e geofísicos, medir a profundidade do oceano ao longo da rota do bloco de gelo e colher amostras do solo. Além disso, foram instruídos a fornecer comunicações de rádio e boletins meteorológicos a Valéri Tchkalov e à tripulação durante o primeiro voo sem escalas da URSS para os EUA sobre o Polo Norte.

Por segurança, a estação foi abastecida com alimento para 700 dias. Ninguém esperava que a expedição durasse tanto tempo, mas os exploradores estavam cientes de que parte disso estragaria – e eles estavam certos. “Trouxemos 150 quilos de bolinhos de massa do continente”, escreveu Ivan Papanin, chefe da Polo Norte-1, em suas memórias “Gelo e Fogo”. “Eles estavam congelados, mas durante a longa jornada e durante a primavera, tudo se transformou em mingau e cheirava horrível. Eu tive que jogá-los fora (...) Havia mais más notícias no polo: os bifes de alcatra, cuidadosamente preparados pelos principais chefs, também não estavam comestíveis.” Os exploradores tentaram atirar em uma lebre-do-ártico e em uma família de ursos polares que vagavam no bloco de gelo, porém sem sucesso.

Os exploradores polares estavam alojados em uma barraca de lona de quase quatro por quatro metros, isolada com duas camadas de cobertura. E, sabendo que tipos de neve produzem os melhores materiais de construção, eles fizeram para si mesmos um “palácio de neve”. Para o trabalho de pesquisa, eles estavam equipados com tendas especiais emborrachadas, dois veleiros, dois caiaques e trenós leves.

A estação flutuava rumo ao sul a um ritmo de cerca de 32 quilômetros por dia.

“O bloco de gelo exigia trabalho intenso e contínuo. Nas primeiras semanas, estávamos tão cansados ​​que às vezes nem conseguíamos pegar o lápis para fazer uma anotação no diário”, lembrou Papanin.

O verão do Ártico, alguns graus acima de zero, com chuvas e tempestades de neve alternadas, separava completamente a estação do continente – não havia como um avião pousar no bloco, coberto de água gelada e profunda. “Há tantos lagos no gelo que deveriam receber nomes... fui dar uma olhada em toda a água que corre sobre o nosso bloco de gelo. Havia até uma cachoeira. Se alguém cair, não há como sair.”

Além dos relatórios científicos, o operador de rádio da estação Ernst Krenkel transmitia uma série de detalhes para a imprensa soviética sobre a vida a bordo da expedição “mais incrível do mundo”. Durante essas populares maratonas de rádio, ele fez contato com um entusiasta de rádio amador do sul da Austrália e um marinheiro do Havaí, que também monitoravam as provações e angústias dos exploradores.

Em setembro, o inverno ártico que se aproximava se fez sentir. O sol se punha cada vez mais baixo, encobrindo tudo no crepúsculo quase permanente; a temperatura não subia mais que zero, e então chegaram as fortes nevascas.

“O vento era tão forte que o derrubava. Era impossível deixar a barraca aberta para tomar um pouco de ar fresco. Lá dentro, estava ao mesmo tempo muito abafado e frio. Minha cabeça ficava girando”, recordou Papanin.

Enquanto seguia para o sul em direção ao mar da Groenlândia, o bloco de gelo começou a rachar, e os pedaços se partiram. Os exploradores ouviram com medo à noite enquanto o chão literalmente se abria sob eles.

“Estamos cercados por fendas e grandes canais. Se o bloco colapsar durante a nevasca, será difícil escapar... Os trenós e caiaques estão cobertos de neve. Chegar às bases de alimentos é impensável...”, escreveu Papanin no diário em 29 de janeiro.

Depois de uma tempestade de quase uma semana no início de fevereiro, o gelo sob a estação estava dilacerado por fendas de 1,5 a 5 metros de largura. O armazém de provimentos ficou inundado, o depósito de manutenção foi cortado para fora do bloco, e uma rachadura apareceu bem debaixo da tenda. “Vamos mudar para a casa de neve. Vou passar as coordenadas hoje mais tarde; se perdermos a comunicação, não se preocupem”, informou o operador de rádio ao continente.

Em 19 de fevereiro de 1938, a algumas dezenas de quilômetros da costa da Groenlândia, dois quebra-gelo soviéticos, Taimir e Murman, resgataram os cientistas do que restava da outrora imensa ilha de gelo. A primeira estação polar à deriva do mundo estava agora situada no topo de um minúsculo bloco de gelo com 300 metros de comprimento e 200 metros de largura.

Ao longo de 274 dias, os exploradores polares haviam percorrido mais de 2.400 quilômetros sobre o bloco de gelo. Saudados como heróis em casa, logo se tornaram oficialmente reconhecidos como tal. Pelo extraordinário feito na exploração do Ártico, o chefe da estação Ivan Papanin, o meteorologista e geofísico Evguêni Fiodorov, o operador de rádio Ernst Krenkel e o hidrobiólogo e oceanógrafo Piotr Chirchov receberam o título de Herói da União Soviética.

A primeira estação à deriva Polo Norte-1 foi seguida por outras 30 expedições soviéticas, e a Rússia contemporânea continua a organizá-las regularmente.

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