Final de 1920, inverno em São Petersburgo. O poeta Nikolai Gumilev, o artista Iúri Annenkov e o oficial bolchevique Boris Kaplun estão na companhia de uma desconhecida – bebendo vinho no gabinete de Kaplun e “falando sobre Whitman, Poe e Kipling”, segundo Annenkov. O trio frequentava esse escritório onde Kaplun fornecia aos seus amigos éter, uma droga recreativa adorada pelos três.
Annenkov continua: “Kaplun olhou para o relógio, pegou o fone e gritou: ‘Traga o carro!’. Era uma bela Mercedes Benz tirada da garagem de algum capitalista. Kaplun explica que em meia hora eles irão testar o crematório, e um cadáver do necrotério será escolhido para cremação – e nos convida para acompanhá-lo.
“Em um hangar enorme, cadáveres cobertos com pedaços de pano jaziam no chão em fileiras intermináveis. O diretor do crematório estava esperando por nós. “Que a senhora faça a escolha”, diz Kaplun, dirigindo-se à mulher. Ela nos olha com terror e, dando passos tímidos entre os corpos, aponta para um deles: “Ivan Sediakin, mendigo” estava escrito a lápis em um pedaço de papelão sujo no peito do cadáver. “Assim, o último será o primeiro”, diz Kaplun, virando-se para nós com um sorriso não rosto: “Piada engraçada, não?”.
Sem Dia do Julgamento para os cremados
O primeiro crematório na Rússia era destinado a japoneses. Foi construído antes de 1917 na região de Vladivostok – na cultura japonesa, a cremação é comum, ao contrário da Rússia, onde até hoje a Igreja não é favorável à prática. Em 1909, o Sagrado Sínodo da Igreja Ortodoxa Russa condenou oficialmente a cremação.
Quando os bolcheviques chegaram ao poder, uma das primeiras medidas foi eliminar o papel da Igreja Ortodoxa no registro de nascimentos e mortes. Antes, todos os nascimentos eram registrados em igrejas, e funerais eram realizados na presença de um padre (exceto para quem cometia suicídio).
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No entanto, quando a religião foi abolida na URSS, a Igreja se distanciou dos funerais. É por isso que os bolcheviques defendiam fortemente a cremação: para os fiéis ortodoxos, as pessoas cremadas não podem ressuscitar depois do Dia do Julgamento, e a cremação era, portanto, percebida como antirreligiosa.
Além disso, depois da Revolução e durante a Guerra Civil, havia muitos cadáveres nas ruas de São Petersburgo e Moscou.
“Em Lefortovo, à noite, os lobos comem cadáveres de pessoas que morreram de tifo. Há uma fila no cemitério, pessoas estão esperando dias nos hospitais para receber tratamento, alguns morrem ali mesmo, outros vão embora. Não tem água quente nos hospitais, os pacientes estão sendo dispensados – não há suprimentos, e os médicos estão morrendo como moscas”, escreveu Praskovia Melgunova em1º de março de 1919. Os crematórios eram, por mais esse motivo, essenciais: São Petersburgo e Moscou não conseguiam mais lidar com tantos cadáveres.
Naquele ano, o líder comunista Vladímir Lênin assinou um decreto estimulando a cremação, embora ainda não houvesse lugares apropriados no país.
Milhares de cemitérios ‘em uma prateleira’
“Ao queimar um homem morto, obtemos um grama de fuligem, e milhares de cemitérios podem caber em apenas uma prateleira”, escreveu Kazimir Malevich em 1919. Os primeiros bolcheviques queriam se livrar dos cemitérios nos esforços para apagar a memória do velho mundo. Em 1920, Kaplun liderou uma comissão para organizar a construção de um crematório. Mais de 200 pessoas se dispuseram a desenvolver o projeto arquitetônico. Annenkov, que era amigo de Kaplun, criou um emblema para o novo espaço: um corvo sentado em uma caveira fumegante (infelizmente, o desenho já se perdeu). “Todo cidadão morto tem o direito de ser cremado”, dizia o anúncio do crematório.
O local deveria ocupar o Aleksandr Nevski Lavra, principal convento de São Petersburgo. A escolha da localização incomodou a Igreja Ortodoxa Russa, e Kaplun foi obrigado a instalar um crematório às pressas em uma antiga bânia(sauna russa) na Ilha de Vassiliev. A primeira cremação aconteceu em 14 de dezembro de 1920.
O famoso escritor russo Kornei Tchukóvski participou de uma das primeiras cerimônias. Em janeiro de 1921, ele escreveu: “Kaplun entrou no crematório, que era como um teatro, e nos guiou através de salões destroçados. Nós ríamos, não há piedade alguma, nenhuma grandeza, tudo é nu e franco. Nenhuma religião, nenhuma poesia para decorar o local da incineração. Todo mundo está de chapéu, fumando, falando sobre cadáveres como se estivessem falando de cachorros. (...) Um jovem engenheiro gritou: ‘Coloque-o!’. Agentes funerários em mantos brancos seguraram o fórceps gigante de metal pendurado no teto (...) encaixaram o caixão nele e empurraram-no para o forno. Através de uma janela, vimos como queimava, o quão alegre e hospitaleira era a chama. Eles acrescentaram gás e ficou ainda mais forte (...) ‘O cérebro queima!’, disse o engenheiro. Os funcionários se aglomeraram em torno da janela. Nós nos revezávamos para espiar e contávamos uns aos outros entusiasmadamente que “o crânio rachou!”, ‘os pulmões estão queimando!’, enquanto graciosamente deixávamos as mulheres observarem primeiro”.
Uma igreja que virou crematório
O primeiro crematório de São Petersburgo funcionou por apenas dois meses, realizando o processo em mais de 400 corpos, sobretudo mendigos, indigentes e prisioneiros de guerra. Depois disso, foi fechado, pois era caro demais para ser mantido. Mas o governo continuou a promover a prática.
Em 1925, uma revista de Moscou publicou um artigo com o título “A cremação de cadáveres humanos ganha mais e mais adeptos”.
O que os bolcheviques não conseguiram em São Petersburgo, eles fizeram em Moscou: em 1927, o crematório de Donskoy foi inaugurado na igreja inacabada de São Serafim de Sarov, dentro do cemitério de Donskoy – travava-se de um lugar altamente reverenciado entre os fiéis na capital soviética.
A cúpula da igreja foi substituída por uma chaminé de 20 metros de altura. No porão, havia um necrotério, além de chuveiros e escritórios. O crematório usava um órgão de 1898 retirado da igreja luterana demolida no bairro alemão de Moscou. Os fornos para o crematório de Donskoy foram instalados pela Topf and Sons, uma empresa de engenharia que mais tarde construiu fornalhas para os campos de concentração nazistas de Buchenwald, Dachau, Mauthausen-Gusen, Mogilev e Gross-Rosen. O doloroso destino de muitos alemães e russos se encontraram neste edifício.
A primeira cremação foi realizada em 29 de dezembro de 1926. Durou uma hora e meia e foi altamente eficaz. Em outubro de 1927, o crematório foi oficialmente aberto. Em 1934, o corpo de seu arquiteto, Dmítri Ossipov, foi cremado e as cinzas guardadas dentro do prédio. Com o apelido “Rostro do Ateísmo”, operou até 1973.
Naquele ano, foi inaugurado em Moscou o crematório de Nikolo-Arkhanguelski (o maior da Europa), e o Donskoy acabou sendo fechado. Até 1984, apenas os corpos dos mais altos funcionários do Partido Comunista foram cremados ali. Em 1992, o prédio foi devolvido à igreja, a chaminé foi demolida, e as liturgias foram retomadas.
Uma parede temporária separa agora a igreja das extensões do período soviético que ainda abrigam mais de 7.000 urnas funerárias. Algumas delas estão negligenciadas, mas a maioria dos moscovitas cujas cinzas de parentes estão ali depositadas se opõem firmemente a transferir os restos mortais para um novo columbário. Diversas urnas e seus respectivos espaços estão em péssimas condições, e o remanejamento pode destruí-los por completo. “Estou irritado com a situação”, disse o ator russo Aleksandr Shirvindt ainda em 2012. “Neste crematório estão as cinzas de meus pais, minha irmã.”
A Igreja Ortodoxa Russa já não mais condena a cremação e permite a realização de cerimônias religiosas antes de os mortos serem cremados.