“Eles olharam para o jovem negro como se ele fosse um milagre, cercaram-no, cobrindo-o de cumprimentos e perguntas; mas esse tipo de curiosidade aborrecia sua autoestima... Ele se sentia como algum tipo de animal raro.”
Assim escreveu Aleksandr Púchkin, maior poeta da Rússia, em seu romance histórico escrito no século 19 "O negro de Pedro, o Grande" (em português, o texto integra o livro "A Dama de Espadas - Prosa e Poemas", pela Editora 34). Nele, Púchkin descrevia a vida de um homem africano chamado Ibrahim na corte do tsar.
O escritor teve motivos pessoais para produzir tal romance. Ibrahim era uma figura histórica, um escravo da África que mais tarde prosperou na Rússia, tornou-se um nobre e ajudou a estabelecer toda uma dinastia. Muito além disso, Púchkin era seu bisneto.
Fazendo o pé de meia na Rússia
Passaram-se séculos desde então, por isso é difícil determinar de onde exatamente veio Ibrahim (1696 - 1781). Suas biografias mais antigas afirmam que ele nasceu na Etiópia, mas o pesquisador e eslavista beninense Dieudonné Gnammankou afirmou posteriormente que Ibrahim era, na realidade, de Camarões.
Qualquer que seja sua verdadeira pátria, é quase certo que os turcos o tenham sequestrado e, por meio do tráfico de escravos, ele teria acabado na corte russa.
Pedro, o Grande, tratava Ibrahim bem, e não apenas lhe concedeu liberdade, mas o batizou de Abram Petrovitch Gannibal (em homenagem ao conhecido comandante norte-africano do Antigo Cartago, sobrenome que o próprio Ibrahim escolheu).
Ibrahim concluiu cursos militares e de engenharia, estudou na França e trabalhou como secretário do imperador. Gnammankou ressalta que Gannibal ajudou a desenvolver relações russo-francesas ao visitar Paris junto com seu soberano.
"O africano, digo, o afro-russo, testemunhou e ajudou a estabelecer relações diplomáticas, científicas e culturais entre esses dois grandes países europeus: Rússia e França", explicou Gnammankou à agência de notícias russa Tass.
Gannibal também teve seu quinhão de dificuldades. Depois que Pedro, o Grande, morreu em 1725, ele caiu em desgraça com o novo governante da Rússia e foi exilado na Sibéria.
Quando a filha de Pedro, Isabel, subiu ao trono, Gannibal retornou a sua propriedade, onde viveu por muito tempo e teve 11 filhos. Entre eles estava o avô de Púchkin, Osip Gannibal. Portanto, o poeta nunca se esqueceu de suas raízes africanas.
Cortesãos negros
A história de Gannibal é bastante fora do comum, mas não é a única. Nos séculos 18 e 19, muitos negros africanos serviram na corte russa como “araps”.
Mas não confunda o termo com “árabe”. Um “arap”, de acordo com o dicionário de 1863 de Vladímir Dal, significava “uma pessoa de pele negra dos países quentes, principalmente da África”. Seu segundo significado era de “porteiro” – que foi como os “araps” serviram a corte.
Sophie Buxhoeveden, dama de honra da imperatriz Aleksandra (mulher de Nikolai 2°), relembrava: “Servas negras vestidas com roupas orientais davam um gosto especial e exótico a tudo no palácio”. A presença delas simbolizava o tamanho e poder do império, que tinha o mundo inteiro na palma das mãos.
Parece racista? E quanto! Mas a prática era comum na maioria das cortes europeias da época, e era muito bem paga.
"Os ‘araps’ estavam entre os poucos no palácio do tsar que tinham um salário, e este era bem gordo", explica o historiador Igor Zimin em seu livro “A corte dos imperadores russos”. A maioria dos servos ali trabalhava em troca de um quarto e refeições.
Rússia como oásis
No século 19, muitos africanos nos EUA acreditavam que se mudar para a Rússia era uma chance de ter uma vida melhor e fugir da brutalidade da escravidão norte-americana.
“O primeiro ‘arap’ americano na corte russa era um ex-criado do enviado americano a São Petersburgo que conseguiu um novo emprego em 1810. Parece que as notícias desse bom trabalho se espalharam rapidamente pelos portos americanos e muitos aventureiros negros correram para a Rússia, na maioria das vezes, como marinheiros nos poucos navios que iam a São Petersburgo”, escreveu Zimin.
Mas a competição por trabalho era intensa e, durante o reinado de Nikolai 1° (1825 - 1855) limitaram-se a oito o número de ‘araps’ de tribunal. Imperatrizes anteriores com uma queda pelo exotismo tinham dezenas de servos negros. Quanto mais negro e mais alto o pretendente a funcionário fosse, melhor, de acordo com a Zimin. Além disso, qualquer um que quisesse servir na corte era obrigado a ser batizado no Cristianismo (não necessariamente na Igreja Ortodoxa Russa).
Não foram apenas os norte-americanos que se tornaram ‘araps’. A funcionária do museu estatal russo Hermitage Nina Tarasova conta a história de George Maria, da colônia portuguesa de Cabo Verde, que serviu na corte tsarista por muitos anos e permaneceu na Rússia muito depois da abdicação de Nikolai 2°.
"Ambos seus filhos lutaram na Grande Guerra Patriótica. Um deles morreu e o outro conseguiu sobreviver até o Dia da Vitória", conta Tarasova.
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