Os oficiais soviéticos gozavam de muito luxo?

História
TOMMY O'CALLAGHAN
Sim... mas também não. Os 'apparatchik' do governo podem ter furado fila quando o suprimento de bens de consumo da União Soviética estava curto, mas só alguns poucos escolhidos tinham um padrão de vida acima do de um norte-americano em cargo médio de gerência.

Na União Soviética, o dinheiro não se equiparava ao poder de um homem: para a “nomenklatura” (elite soviética), quase tudo era livre, mas estatal. A URSS pode ter passado por vários períodos de escassez em sua história, mas ter os contatos certos no Partido se provou ser uma estratégia melhor de sobrevivência que esconder dinheiro sob o colchão.

Isto não se aplicava apenas aos burocratas, mas também a suas famílias e às “celebridades” soviéticas - escritores, astronautas, esportistas etc. De acordo com o dissidente Mikhail Voslenski, autor do relato de 1984 “Nomenklatura”, isso se estendeu a cerca de três milhões de pessoas na década de 1980. Como a filha de Iossif Stalin, Svetlana, contou certa vez, seu pai não precisava gastar nem um centavo do salário.

Carros

O topo da nomenklatura soviética tinha os melhores carros do país, geralmente um GAZ Volga (o equivalente soviético de um Mercedes-Benz), um veículo luxuoso o suficiente para o presidente Vladimir Putin se exibir ao presidente norte-americano George Bush em 2005.

A limusine ZiL, ainda mais elegante, ou o Tchaika também estavam disponíveis, mas eram reservados essencialmente para o secretário-geral (o cargo do líder do país então) e a outros membros do Comitê Central.

Algumas vias de Moscou tinham suas próprias "vias do ZiL", para garantir que os políticos mais importantes nunca se atrasassem nas reuniões.

É claro que o fato de estes carros serem do Partido certamente atenuava sua “luxuosidade”, já que os oficiais não podiam ter carros próprios. Carros de festa podiam ter motoristas particulares, mas se o oficial deixasse o posto, também perdia o carro.

Houve exceções, no entanto, por exemplo, durante a era Brejnev (1964-1982), em que a União Soviética começou a produzir carros para consumo privado. O Estado nunca fez da produção em massa uma prioridade: em um discurso de 1959, Khruschov declarou: “Não é nossa meta competir com os americanos na produção de mais carros privados”.

Em 1975, apenas uma a cada 54 pessoas possuía um carro no país (nos EUA, uma a cada duas pessoas tinha um automóvel). Além disso, esses carros estavam disponíveis apenas para os cidadãos comuns que pudessem comprá-los por meio de um sistema de mérito e filas baseados no trabalho.

A maneira mais rápida e fácil conseguir um carro, portanto, era servindo em um órgão do governo ou ocupando uma posição de alto escalão. No clássico filme soviético “Moscou não acredita em lágrimas”, a personagem principal Katerina, chefe em uma fábrica, é retratada como o símbolo da mulher soviética bem-sucedida, e usava um carro estatal Moskvitch – bem diferente da Ferrari, mas talvez de status similar na URSS naqueles tempos.

Outros oficiais com cargos mais baixos também tinham o privilégio de furar a fila do automóvel, mas os carros que compravam estavam muito longe de ser luxuosos.

No livro “Pleasures in Socialism” (em tradução livre, “Prazeres no socialismo”), por exemplo, Jukka Gronow descreve como uma grande cota da distribuição de carros Lada e Pobeda era supervisionada por oficiais militares que manobravam a aquisição dos veículos para os membros merecedores de seus departamentos.

Alguns chegavam a conseguir até mais de um Pobeda para outros membros da família - um feito visto como o auge do luxo na época, apesar de os carros permanecerem como propriedade do Estado.

Moradia

A distribuição da acomodação soviética era centralizada de maneira muito mais rigorosa que os carros, e a extensão de seu luxo mudou drasticamente com o tempo.

Oficialmente, ninguém possuía o próprio apartamento, e o lugar onde se morava era determinado pela proximidade do trabalho e de onde os colegas também viviam.

Isto não era diferente para a nomenklatura, que lotava prédios com outros membros das elites - uma tradição iniciada por Stálin, que ergueu estruturas onipresentes como o enorme prédio da Margem Kotelnitcheskaia para abrigar funcionários do NKVD e artistas (os moradores desses apartamentos foram escolhidos pelo próprio Stálin).

A alta demanda por quartos nesses blocos de elite foi aliviada pelas grandes repressões burocráticas sob a liderança de Stálin.

Depois da morte de Stálin, o degelo nas repressões criou um maior número de membros na nomenklatura e, para abrigá-los, as edificações de elite começaram a ser transferidas para fora do centro de Moscou, tornando-se um pouco menos luxuosas.

Além disso, ao contrário dos “stalinki”, Brezhnev não queria que os lares de seus principais funcionários fossem pontos de referência e deixava que eles se mesclassem com os que os cercavam.

Um exemplo disso são as Casas Tsekovski, em Kuntsevo (um subúrbio de classe média no oeste de Moscou), apelidadas de "Aldeia do tsar". A ex-advogada soviética de alto escalão Lidia Sergueievna relembra: "Recebi um apartamento de três cômodos para minha família, com área total de 93 metros quadrados, na 'Aldeia do tsar', em 1980. Não era um palácio, mas tínhamos um mezanino, duas varandas e uma portaria”.

No que diz respeito às casas dos líderes, os secretários-gerais da União Soviética geralmente moravam em algum lugar um pouco melhor que a "Aldeia do tsar", mas bem distante dos luxos da Casa Branca, em Washington.

O apartamento de Leonid Brejnev na prestigiada avenida Kutuzovsky Prospekt, número 26, que foi vendido, em 2011, por 18 milhões de rublos (US$ 620.000 na época), tinha apenas 54 metros quadrados de área útil. Mesmo como secretário-geral, Brejnev não possuía o apartamento.

Mikhail Gorbatchov viveu em uma cobertura na travessa Granatni, número 10, no centro de Moscou, de 1986 a 1991, e a residência foi considerada um grande salto em questão de status – apesar de não ser de propriedade do político -, o que irritou muita gente na época. Posteriormente, o apartamento foi comprado pelo compositor Igor Krutoi, segundo se diz, por US$ 15 milhões.

Um ultraje ainda maior foi causado pela datcha (casa de campo) de Gorbatchov, de US$ 20 milhões, em Foros, na Crimeia, construída inteiramente às custas do Estado.

Mas isto não quer dizer que as elites soviéticas não tirassem férias já muito antes da Perestroika. Um estudo recente revelou os preços de mercado atualmente das enormes casas de férias da nomenklatura, e o valor da mansão mais cara delas, no subúrbio de Nikolina Gora, em Moscou, é estimado em US$ 26 milhões.

Outras construções milionárias em áreas de prestígio fora de Moscou, como Peredelkino, Jukovka e Barvikha foram habitadas por grandes nomes da literatura e das artes soviéticas como Pasternak, Ievtuchenko, Eisenstein, Iessênin e muitos outros.

Compras

Já está bem documentado que os funcionários do governo soviético eram servidos por lojas separadas das que eram oferecidas ao resto da população da URSS, fato muito invejado pelos soviéticos comuns.

Em 1985, um homem chamado N. Nikolaev, de Kazan, capturou o sentimento da nação com uma carta que enviou ao jornal Pravda (e foi publicada!), onde se lia “deixem que  o chefe vá à loja comum, com todos os outros, e deixe-o ficar na fila por horas a fio, como todo mundo!”.

Apesar de as lojas soviéticas tenderem a suprir o povo com produtos “básicos” como pão, batatas e doces, as carnes e embutidos geralmente eram escassos, principalmente fora de Moscou.

Por outro lado, um estudo de 1978 do especialista em estudos soviéticos Mervyn Matthews intitulado “Privilégios na União Soviética” revelou o quanto os altos escalões do governo soviético comiam bem.

De acordo com Matthews, 8% das lojas soviéticas aceitavam "ordens preliminares", entregando alimentos que eram invisíveis aos cidadãos comuns, como bifes de filé, lagosta e caviar negro, diretamente às portas das autoridades, duas vezes por semana.

No entanto, a extensão do luxo nos pratos dos “apparatchik” tem sido debatida, e o ex-vice-premiê da República Socialista do Tadjiquistão, Gueórgui Kochlakov, declarou, em uma entrevista em 2008, que os supermercados restritos se assemelhavam a qualquer outra loja.

"Essas lojas tinham tudo o que deveria estar nas lojas normais e pelos mesmos preços. Tudo era fresco: manteiga, queijo, salsichas. Mas não me lembro de nenhuma iguaria exclusiva”, disse.

Se seu relato é ou não verdadeiro, uma coisa é certa: os funcionários do governo nunca poderão dizer que passaram fome. Já o povo em geral não pode dizer o mesmo.

Privilégios familiares

Na URSS, os cuidados de saúde eram normalmente organizados pela gestão do local de trabalho, com “polikinikas” (centros de saúde) instaladas no local de trabalho e na maioria dos blocos de apartamentos.

Não é preciso dizer que os cuidados dedicados à saúde das famílias da nomenklatura tinham padrão diferente. O escritor de literatura infantil Kornêi Tchukóvski, que foi tratado em um hospital do Partido em 1965, escreveu em seu diário que “as famílias do Comitê Central construíram para si um paraíso, enquanto as pessoas em outros leitos estavam famintas, sujas e sem os remédios corretos”.

A prática também se estendia a funcionários de baixo escalão no governo Brejnev, já que ele construiu diversos sanatórios enormes para pessoas em cargos medianos de chefia em balneários como Riga e Sôtchi, assim como em Kursk e Nôvgorod.

Além de serem bem cuidados, os filhos de oficiais do governo russo também parece que tinham garantido um emprego a sua escolha. No livro “Os dez da Rússia” (em tradução livre), Iliá Stogov conta como os filhos da nomenklatura iam a escolas especiais que lhes garantiam um futuro brilhante.

"Depois de obter seus diplomas, eles podiam ir para o exterior como diplomatas, representantes comerciais, jornalistas - o que quisessem", escreveu Stogov.

A sobrinha de Brejnev, Luba Brejnev, também contou um pouco sobre a doçura que era a vida dos herdeiros da nomenklatura em seu livro de memórias “The World I Left Behind” (em tradução livre, “O mundo que deixei para trás”).

Em seu franco retrato da elite soviética, Luba revela como ela tinha, assim como os filhos de outros altos funcionários, empregos com pouca ou nenhuma responsabilidade, e ocupava seu tempo pintando as unhas ou escrevendo poesia.

“Alguns se voluntariavam a trabalhos duros simplesmente porque não suportavam aquele tédio”, escreveu ela.

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