Basílio, o homem que se safou de ralhar com Ivã, o Terrível

Ivã, o Terrível retratado por Andrêi Riabuchkin (1903).

Ivã, o Terrível retratado por Andrêi Riabuchkin (1903).

A Catedral de São Basílio talvez seja o símbolo mais conhecido da Rússia, mas poucos sabem sobre o homem que dá nome à construção. Um “iurôdivi” medieval, ou seja, “louco por Cristo”, ele foi amplamente reverenciado em Moscou por sua devoção. Ele também foi o único homem que podia repreender e até ralhar com Ivã, o Terrível – e se safar disso.

O embaixador inglês na Rússia no século 16, Giles Fletcher, escreveu ter visto em Moscou “certos eremitas (que eles chamam de homens sagrados)... Eles costumam sair totalmente nus, exceto por um trapo no meio, com os cabelos longos e selvagens pendurados sobre os ombros, e muitos deles com um colar ou corrente de ferro nos pescoços... até no extremo inverno. Eles são tomados por profetas, e homens de grande santidade, que têm a liberdade de falar o que eles registram sem qualquer controle... Dessa maneira, se eles reprovam alguém abertamente por qualquer motivo, justificam apenas que aquilo é por seus pecados”.

Neste trecho, Fletcher descreve os “loucos por Cristo”, pessoas que frequentemente escolhiam a devoção como meio de vida e de expressão de seus pontos de vista sobre o mundo. Santo Basílio foi um deles – e, provavelmente, o mais proeminente na Rússia.  

Lendas e realidade entremeadas

“Basílio, o Abençoado” (Serguêi Kiríllov, 1994)

Basílio (Vassíli) nasceu por volta de 1469 em Moscou, em uma família simples e pobre. Seus pais o mandaram para estudar o ofício de sapateiro. Um dia, um comerciante apareceu para encomendar um par de botas “que durasse bastante”.

Basílio chorou e explicou ao dono da loja que o comerciante não conseguiria nem calçar as botas, já que morreria muito em breve. E assim foi. Foi quando a clarividência de Basílio se revelou.

Aos 16 anos, Basílio deixou sua casa para se tornar um “louco por Cristo”. Nu em todo tipo de clima, ele perambulou pelas ruas de Moscou, sempre rezando e fazendo coisas que pareciam tolas, mas tinham significado profundo para ele.

Uma biografia quase lendária escrita após sua morte conta sobre as travessuras de Basílio. Andando por um mercado, ele sempre quebrava jarros de kvas ou virava formas de pães. Depois se descobriria que os kvass estava velhos e os pães, mal assados.

Assim, os comerciantes não levavam suas ações como ofensa. Pelo contrário, quando Basílio pegava qualquer comida deles, isso era considerado uma benção.

Dizem que Basílio teria previsto um grande incêndio em Moscou em 1547. Dias antes, ele foi visto rezando, de todo coração, diante de uma das igrejas e chorando. As pessoas dizem ter ouvido barulho e visto imagens do fogo tomando a igreja. Após o incêndio ter realmente ocorrido, Basílio ganhou ainda mais atenção.

Lendas também atribuem a Basílio a habilidade de andar sobre a água e curar os cegos. Dizia-se que ele cegou três mulheres que zombaram de sua aparência e depois as curou, quando elas se desculparam.

Diz-se também que ele muitas vezes jogou pedras nas paredes das casas de pessoas devotas “para afastar os demônios” e chorou próximo a bordeis e estabelecimentos de venda de bebidas, dizendo estar “desesperadamente pedindo aos anjos que salvassem os pecadores que habitavam esses locais”.

A fama de Basílio cresceu rapidamente em Moscou. Até o próprio tsar, o notável Ivan, o Terrível, daria atenção às palavras de Basílio. Certa vez, o “louco por Cristo” foi convidado ao Kremlin em nome do tsar. Ele recusou três vezes o convite para beber à saúde de Ivã, jogando a bebida pela janela, ou seja, um grande insulto.

Quando o tsar, enfurecido, perguntou por que Basílio ralhava com ele daquela maneira, ele respondeu que ele estava colocando fogo em Nôvgorod e correu para fora do palácio. O tsar enviou então um mensageiro a Nôvgorod e descobriu que, no momento exato do banquete, iniciava-se um enorme incêndio, mas um homem nu havia aparecido e começado a apagar o fogo com água de sua caneca.

Lendas e rumores frequentemente mencionam Basílio xingando e ralhando com o tsar em público ou lhe dando carne crua e sangue, dizendo “esta é sua comida e bebida” após o massacre que Ivã instigou em Nôvgorod em 1570.

O único problema aqui é que Basílio morreu por volta de 1557, ou seja, anos antes do massacre de Nôvgorod.

Quão real é Basílio?

“Moscou sob Ivã, o Terrível. Praça Vermelha”, de Appolinari Vasnetsov.

Historiadores dizem, porém, que há muitas falhas cronológicas e factuais na história da vida de Basílio. Agora, parece que em sua hagiografia os tratados e histórias contêm diversos “loucos pro Cristo” condensados em um só.

O que é definitivamente verdadeiro é que Basílio era respeitado pelo tsar e por sua família. Quando Basílio já era muito velho e estava próximo da morte, Ivã foi visitá-lo com sua mulher, Anastassía, e seus filhos, Ivã e Fiódor. Basílio previu que Fiódor seria o próximo tsar, o que acabou mesmo ocorrendo.

Quando Basílio morreu, o próprio tsar apareceu para carregar seu caixão, e a missa funerária foi rezada por Macarius, o metropolita de Moscou. Em 1588, durante o reinado de Fiódor, ele foi declarado santo por Job, o primeiro Patriarca de Moscou – equivalente ao Papa para a Igreja Católica. Além disso, seus restos mortais foram transferidos para a Catedral de Pokróv, que desde então passou a ser chamada de São Basílio, o Abençoado.

Seu santuário se tornou local de peregrinação e reza. Normalmente, as pessoas rezam ali para serem curadas, sobretudo de doenças relativas à visão – há relatos de que olhos de prata frequentemente são depositados próximos aos santuário como sinal de gratidão pelos milagres que São Basílio teria levado aos peregrinos que ali rezam.

O dia em memória de São Basílio é 15 de agosto, e até hoje o Patriarca de Moscou reza uma missa anual nessa data em sua homenagem na catedral.

Quer saber mais sobre a catedral dedicada a São Basílio? Então leia "Como um arquiteto convenceu Stálin a não demolir a Catedral de São Basílio?"

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