Opinião| Por que os russos são tão ansiosos?

Estilo de vida
GUEÓRGUI MANÁEV
Se você já foi três vezes verificar se trancou a porta – e, sim, definitivamente trancou-a, é melhor não ler este texto.

Eu estava indo até o metrô de manhã, parado ao lado da porta do ônibus, olhando para o meu telefone, quando tomei um empurrão muito forte de repente. Era uma mulher, na casa dos 70 anos, que explicou depois que não tinha visto eu me "preparar o suficiente para sair".

Você já deve ter visto os russos pulando de seus assentos no avião e lotando o corredor, desesperados para sair o mais rápido possível da aeronave. Às vezes, eles precisam passar muito tempo de pé esperando a porta do avião abrir – mas isso não importa, porque todo esforço é válido quando se quer chegar antes de todo mundo.

A mesma cena se repete em quase todos os ônibus, trens e bondes russos: eles se levantam várias paradas antes daquela onde precisam saltar só para sair 15 segundos antes dos outros. Absurdo? Talvez sim, mas tem suas razões...

Pouco antes da queda da URSS, no início de 1991, Gorbatchov decidiu realizar uma reforma monetária, reduzindo o número de cédulas em circulação para diminuir a inflação. A assinatura do documento, segundo o qual as maiores cédulas em circulação (as de 50 e de 100) seriam retiradas de circulação, foi noticiada no telejornal às 21 horas.

A mudança deveria ocorrer depois de três dias - com a sorrateira esperança de que os cidadãos não tivessem tempo de trocar suas economias por notas menores. Quem viu as notícias na hora, correu em seguida para trocar suas notas de 50 e 100 rublos nos caixas de metrô, estações de trem etc. (ou seja, com quem ainda não estava sabendo da novidade). Na manhã seguinte, houve uma enorme histeria quando o país todo soube da notícia.

Este é apenas um exemplo de como a União Soviética realizou as reformas mais inesperadas e que mudaram a vida em questão de segundos sem consultar o público ou avisar com alguma antecedência.

Isto não era raro na Rússia pré-revolucionária: as autoridades frequentemente anunciavam mudanças significativas aos cidadãos enquanto elas já estavam acontecendo. Por exemplo, os camponeses e proprietários rurais tomaram conhecimento da Reforma Camponesa de 1861 desse jeito - foi uma surpresa terrível e fatídica para a maioria da população.

A cultura política de deliberação pública, as assembleias “vetche” e os conselhos de Zemstvo tornaram-se coisa do passado na Rússia, com o estabelecimento final do absolutismo de Aleixo da Rússia e seu filho Pedro, o Grande.

A partir dessa época, o Estado assumiu um cuidado "paternal" de seus cidadãos, tentando regular todos os aspectos de suas vidas (de que Pedro estava particularmente preocupado em seus decretos) e convencendo a população de que não havia ninguém a quem recorrer senão a autoridade central para obter ajuda.

Além disso, toda a estrutura de poder na Rússia estava encerrada no imperador, que era, ao mesmo tempo, o mais alto funcionário civil e militar e o predecessor divino de toda a Rússia. Durante séculos, a vontade do governante supremo foi recebida pelas pessoas comuns como um agente inevitável e fatídico.

O segundo fator sempre foram, e ainda são, as vastas distâncias russas. No século 18 no Extremo Oriente, por exemplo, a morte de um imperador e a coroação de um novo imperador era sabida não menos de seis meses após os eventos terem ocorrido em São Petersburgo.

Se essa era a velocidade com que a informação era transmitida, pode-se imaginar a velocidade com que as viagens eram feitas. Por exemplo, em 1804 o conde Fiodor Tolstoi levou quase um ano para chegar de Kamtchatka a São Petersburgo.

Quanto maior a distância, maior a medida do desconhecido. Portanto, ainda há muitos lugares na Rússia onde se diz: "O ônibus virá hoje, mas ninguém sabe quando exatamente. Mas ele virá com certeza".

Querendo ou não, é preciso se acostumar com isso. Eis a origem de outro estranho hábito russo: chegar ao aeroporto de 3 a 4 horas antes do voo, por medo de perdê-lo. Tudo pode acontecer. Absolutamente tudo pode acontecer.

Na época soviética, a situação era agravada pela economia planejada e pela distribuição total de bens e serviços. Tomando conta de todas as esferas da vida da população, abolindo a propriedade privada e os negócios privados, o regime soviético tomou para si mais do que podia aguentar.

Daí o fenômeno das filas soviéticas que podiam "permanecer" por 2 a 3 dias - a ordem da fila era restaurada toda manhã, de acordo com os números que os compradores se atribuíam para manter uma ordem.

Mas quase sempre a "cauda" da fila era deixada sem nenhuma mercadoria – e vem daí o eterno desejo do homem soviético de furar a fila. Esse desejo é alimentado desde cedo, quando muita criança tem que ficar na fila com seus pais e avós para "guardar" um lugar e às vezes até mesmo defender fisicamente o direito de eles serem atendidos.

Mas a ansiedade não terminava com a compra das mercadorias - elas tinham que ser cuidadosamente inspecionadas e verificadas, já que a porcentagem de defeitos na URSS era enorme – podia haver uma taxa de 40 a 50 por cento de defeitos nos lotes de mercadorias.

Uma vez que você tivesse se certificado de que as mercadorias estavam em boas condições, você tinha um pé de meia – afinal, talvez você tivesse que revendê-las, em caso de problemas financeiros. É por isso que, até hoje, por um velho hábito, os idosos russos (e também os não tão idosos assim) mantêm as etiquetas de compras nos eletrodomésticos, os controles remotos em sacos de celofane e as caixas dos computadores e dos aparelhos de TV. 

A escassez de mercadorias, o hábito de viver sem um horizonte de planejamento, a necessidade constante de "dar um jeito" e "sair ganhando" algo, todos esses atributos indispensáveis da vida soviética provaram ter consequências muito mais abrangentes e nos influenciam até hoje.

Tudo isso nos faz lembrar – por meio de hábitos aprendidos na infância com nossos pais, que nos cercavam com cuidado 24 horas por dia, 7 dias por semana - que em alguns países as mães russas são chamadas de corujas. “Conserte suas roupas”, “Não se descuide”, “Que cara triste é essa?” Não é preciso ser psicólogo para adivinhar que este tipo de pessoa faz efetivamente com que seus filhos se tornem ansiosos.

Enfim, a moderna onda de ansiedade que tomou todo mundo junto com a disseminação da internet móvel chegou também à Rússia. A síndrome do "medo de perder" (ou “fear of missing out”) gera a constante ansiedade de não poder verificar o telefone imediatamente, o que aumenta o já existente histórico de ansiedade russo. Aliás, isto não é um problema só dos russos. 

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