O equatoriano que foi à Rússia para ser médico e descobriu a paixão pela música

Svetlana Lomákina/Natsiya
Jackson Eduardo viajou de Guayaquil ao país eslavo em 2003 para estudar medicina e agora é um russo completo. Mas não perdeu o rebolado latino.

Quando as primeiras notas da lambada soaram, a pista de dança do clube “Baba Liuba”, em Rostov-no-Don, tremeu e as pessoas começaram a se juntar aos dançarinos e músicos. Jovens, pessoas de meia-idade e até mais velhos largaram suas coisas e os vizinhos tímidos e partiram para a pista, remexendo os quadris, em meio a nuvem de fumaça do palco. O vocalista da banda Eduardos cantou e cantou sobre amor à beira do mar, e com seus gestos e olhar encorajou as pessoas a se juntarem à lambada. Eu também não aguentei e acabei deixando a câmera em cima da mesa...

Este foi nosso primeiro encontro com o “médico musical” de Rostov-no-Don. A segunda ocorreu em seu consultório hospitalar. Ali, Jackson Eduardo Moreira Barco estava sério e focado; veio no dia de folga, para “terminar o trabalho que sobra depois do trabalho”.

- Estou confusa: no show te chamaram de Eduardo, aqui todo mundo te chama de Jackson.

- É assim. Meu primeiro nome, o principal, é Jackson. É para o trabalho no hospital: é mais fácil para as pessoas lembrarem. O segundo, Eduardo, é mais musical, indicando o estilo da nossa música, latino-americana.

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Jackson Eduardo nasceu em Guayaquil, no Equador, em uma família humilde, e seus pais tiveram que fazer grande sacrifício para educar os três filhos.

“Tenho um irmão e uma irmã, que agora moram nos Estados Unidos. Nossa família era considerada a mais educada do bairro. Papai era médico, mamãe era professora de francês na escola e na universidade”, conta Jackson.

“Nas escolas equatorianas, o campo de estudo é escolhido imediatamente: física-matemática, química-biologia. Ou um assunto, como contabilidade. Então, quando você se torna adulto e muda de ideia sobre sua carreira, é difícil fazer a mudança; você pode ir para uma universidade particular, mas é muito caro. (...) Foi assim para mim. Na escola eu estava estudando para ser programador. Meus pais decidiram que este era o campo de estudo mais promissor. Em seguida, recebi treinamento adicional em comércio. E quando comecei a trabalhar como representante farmacêutico, percebi que queria ser médico.”

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- Seu pai foi um exemplo?

- Sim. Meu pai era pediatra. Desde que me lembro, trabalhava o tempo todo: atendia pacientes em seu consultório, e à tarde ou mesmo à noite vinham à nossa casa pedir socorro de emergência: acidentes, ferimentos por facada, lesões domésticas. Ele nunca se negou a atender ninguém. Eu ficava orgulhoso dele. E ainda fico. Papai já tem 75 anos.

- Por que você escolheu a Rússia?

- Eu estava procurando um lugar onde pudesse estudar para ser médico: no Equador não havia essa oportunidade com minha formação. Sugeriram a Rússia e me mostraram fotos: a Praça Vermelha, a universidade, o alojamento. Disseram que a Rússia era a Europa. Comecei a preencher a papelada, mas estava atrasado em relação ao grupo e voando por conta própria, sem saber o idioma, sem ter ideia do que me esperava lá. Cheguei a Moscou em agosto de 2003. O resto foi difícil: passei muito tempo no aeroporto, não sabia como chegar ao alojamento de estudante e depois à própria residência, onde tudo não era como parecia a foto. Esta era a Rússia depois dos anos 90, você sabe...

- Foi difícil no começo? Língua, dinheiro, cotidiano...

- A língua, não. Procurava placas; no mercado, na loja, eu apontava o que eu queria e eles me mostravam na calculadora quanto custava. Os idiomas são fáceis para mim em geral. Eu sabia inglês bem e aprendi russo com facilidade. Apenas as difíceis palavras duplas: “agrícola” (selskokhoziáistvenni, em russo) e “mamífero” (mlekopitáiuchisia, em russo) eram difíceis. Agora já nem parece que elas são tão grandes assim, mas só o meu sotaque que não desaparece. Antes, quando não havia aplicativos móveis, os taxistas, ao me ouvir falando, sempre tentavam me enganar. Mas também não somos tontos (risos). Foi mais difícil com dinheiro. Conheci minha esposa quando ainda estava na universidade, íamos ter um filho, então tive que estudar e trabalhar ao mesmo tempo. Como minha esposa estava grávida, foquei em obstetrícia e tirei A no exame estatal. Essa se tornou minha profissão.

- Você tem duas filhas. Como você as educa, com que tradições?

- Nas tradições do país em que vivemos. Lucía tem agora 15 anos e Amelia tem 12. Quando tinham 6 e 3 anos, nos mudamos para o Equador e moramos lá por 4 anos. Teve algo curioso: em Rostov, muitas vezes eu contava para elas sobre minha terra natal. Esse Equador era exótico, havia o oceano. Então chegamos lá e ficamos com meus pais em Guayaquil. Passou um dia, dois... Minha filha mais velha me chama e diz: “Pai, quando vamos para o Equador?” - Já estamos aqui, eu respondo. - “Mas é uma cidade. Como Rostov... Onde está o oceano?” Elas tinham pintado um mundo de conto de fadas. Pelas minhas filhas, eu escolhi trabalhar em um hospital na cidade de Bahía de Caráquez, bem próximo ao mar.

- Por que você voltou ao Equador?

- Pelo trabalho. Há muitos médicos aqui [na Rússia], era difícil encontrar um bom emprego na minha especialidade. Lá, com minha educação, eu poderia conseguir um de imediato. Eu trabalhei como ginecologista-obstetra por quatro anos. A prática era intensa, uma vez que assisti ao parto de cinco mulheres ao mesmo tempo, lembro daquele dia como se fosse hoje! Em 2015, decidimos voltar para a Rússia porque nossas filhas estavam ficando mais velhas e precisavam de uma boa educação. Voltei a ter problemas com meu trabalho, então trabalhei em outros lugares e depois consegui um emprego em uma clínica feminina. Não pagavam muito, mas aceitei para não perder a experiência. Para alimentar minha família, fui procurando outra coisa. Obtive um diploma em ultra-sonografia diagnóstica.

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- Agora quero fazer algumas perguntas não ao Jackson, mas ao Eduardo. Conte-nos como sua banda nasceu.

- Temos mais de dez anos e fizemos turnês por todo o sul da Rússia, na costa do Mar Negro, e fizemos shows na Abecásia. Mas não tenho formação musical e não conheço as notas.

- Você está brincando? Você tocou em um show no clube ‘Baba Luba’ com vários instrumentos…

- Eu canto e toco de ouvido. E tudo começou assim. Quando estávamos esperando nosso primeiro filho, eu aceitava qualquer emprego, um amigo me aconselhou a me candidatar a um casting: a música latino-americana estava na moda e os restaurantes procuravam cantores. Ele passou no teste, o ganho de 800 rublos parecia pouco para ele e eu aceitei.

Então eu cantei. E o mesmo homem começou a frequentar o restaurante o tempo todo. Um dia ele se aproximou de mim e disse: por que você não monta sua própria banda? Sinceramente, já tinha dito que não conheço as notas e que mal sei tocar guitarra. Minha ex-mulher (infelizmente nos divorciamos há alguns anos, mas ainda temos um bom relacionamento) é treinada musicalmente. E eu tinha músicos ao meu redor, então, formou-se uma banda. Hoje tenho uma equipe internacional e muito profissional: o armênio Robert, que veio de Ierevan para Rostov. E dois russos de Rostov, Serguêi e Vova. Eles são professores na faculdade de artes e em escolas de música.

- Você compõe alguma coisa?

- As vezes acontece. Eles estão escrevendo músicas, mas até agora nós tocamos principalmente o que as pessoas gostam e conhecem. Tocamos salsa, bachata, samba, merengue, reggaeton e cumbia. 

- Qual é a sua música russa favorita?

- Noite escura [“Tiómnaia noch”, em russo]. Me dá arrepios: é tão profunda, e tem tantas coisas, as verdadeiras... Sinto tudo relacionado à Grande Guerra Patriótica muito de perto. Não tenho nenhum parente aqui que tenha lutado na guerra, mas quando vejo o Regimento Imortal ou canto essas canções, as tomo como minhas. Nem sei por que ressoa comigo.

- Talvez porque você já seja um pouco russo?

- Por que um pouco? Muito – há muito tempo eu tiro os sapatos para entrar em casa, aprendi a falar com as pessoas nas filas russas. Havia filas em todos os lugares: da loja ao banco, e lá aprendi a falar russo. Tive uma ideia da cultura russa, entendi as pessoas, suas ações e experiências. De muitas maneiras, isso aconteceu graças à minha profissão: as mulheres não falam apenas sobre seu estado físico, mas também sobre seu estado mental. O que acontece com o marido, o que acontece em casa, o que acontece no trabalho.

Várias vezes eu quis ir embora, foi especialmente difícil depois do meu divórcio. É um momento muito difícil para todos. Mas minhas filhas estão aqui, meus amigos, minha música. Meus pacientes, de quem sou amigo há anos. Acontece que eu tenho tudo na Rússia. E agora sou mais russo do que equatoriano. Bem, pelo menos é o que dizem na minha terra.

Esta entrevista foi realizada para o projeto ‘Da Rússia com amor’ da revista russa ‘Natsia’. A versão original, em russo, foi reduzida e adaptada por editores do Russia Beyond.

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