Quem cresceu na década de 1990 na Rússia e em outros países pós-soviéticos lembra bem do “obschak”. Mas poucos dentre os que eram jovens naqueles anos entendiam o que era feito com os centavos que lhes eram tirados o tempo todo para o misterioso “obschak”.
Entretanto, para os tubarões do submundo do crime, o “obschak” compunha um fundo real, tangível e vigiado de perto, com o objetivo de financiar suas trapaças.
"Manter os meninos aquecidos"
O submundo do crime russo distingue entre dois tipos de “obschak”, dependendo de onde os fundos são coletados e como eles são usados. O termo em si deriva da palavra russa "comum" (em russo, “obschi”).
Detentos em prisão russa.
Shepard Sherbell/Corbis/Getty ImagesO chamado "obschak do campo" (em russo, “láguerni obschak”, em que “láguer” se refere a “campo de trabalhos forçados”) é um fundo coletivo reunido por detentos em qualquer prisão no país.
Dependendo da prisão, o tamanho e o conteúdo do “obschak do campo” variam. Via de regra, esse “obschak” é composto por dinheiro, cigarros, chá e itens alimentares não perecíveis, como carne enlatada. Eles são usados para ajudar os presos necessitados ou para subornar os guardas, comprando pequenos privilégios.
O “obschak do campo” é reabastecido continuamente. Os presos devem doar voluntariamente uma parte daquilo que recebem de parentes e amigos para o “obschak”. Recusar-se a fazê-lo é mal visto, considerado um insulto à cultura e às tradições dos ladrões e punível por ostracismo ou coisa pior.
Na prisão, os presos mais velhos podem taxar todos os jogos de cartas com um imposto de 20 por cento ou mais. O dinheiro vai para o “obschak”.
Às vezes, o “obschak do campo” pode ser reabastecido com o chamado “caixa livre” (do russo, “svobodnaia kassa”), ou seja, uma rede de fontes financiadoras localizadas fora dos muros da prisão e que têm por objetivo canalizar um fluxo de caixa estável lá dentro.
Na década de 1990, era comum os chefes do crime locais coagirem os jovens a doar dinheiro para o “obschak”, uma prática conhecida como "manter os meninos [ou seja, os presos] aquecidos" (em russo, “patsanov na zona gret").
Outra fonte para o caixa do “obschak do campo” são as doações dos ladrões ricos e poderosos. Em uma carta do notório chefe da máfia russa Viatcheslav Iapontchik para os presos de uma prisão russas, lê-se:
“Vagabundos da 16° BUR [gíria para "Círculo de Segurança Máxima dentro de uma colônia prisional"], eu os saúdo desejando-lhes apenas o Melhor e o Mais Brilhante. Aqui é o Viatcheslav ‘Yaponchik’. Vendo como hoje, um de vocês está voltando para a população geral, estou enviando mais de 400 rublos... Esses 400 rublos – como acordado com outros vagabundos - devem ser depositados no ‘obschak’, juntamente com os 200 rublos anteriores: eles foram doados a Ruslan como ladrão, mas isso não é apropriado, pois ele não é ladrão. Acho que estamos sendo claros aqui. Por isso, estou enviando o dinheiro, que totaliza 600 rublos, de volta ao tesouro. Estou fazendo o certo. Agradeço a todos por sua atenção e preocupação. Por favor, aceitem meus cumprimentos mais gentis. Com respeito, Viatcheslav 'Iapontchik'.”
O chefe da máfia russa Ivankov recebido por familiares ao deixar o tribunal em Moscou.
ReutersApesar das doações e de outras fontes, o “obschak do campo” parece um pouco um fundo de caixa, em comparação com seu análogo fora dos muros da prisão, o chamado “obschak livre” (em russo, “svobôdni obschak”).
Milhões de dólares
Reza a lenda que o “obschak livre” nasceu no início do século 20, embora seja difícil dizer com certeza quando os chefes do crime da alta hierarquia começaram a acumular um fundo de caixa centralizado.
Mas todos concordam que o volume do “obschak livre” é enorme e não pode ser comparado ao mais luxuoso dos “obschaks do campo”, sendo medido, segundo alguns, em milhões de dólares americanos.
Os esquemas financeiros dedicados a reabastecer o “obschak livre” também são mais elaborados. O caixa flui de todos os tipos de criminosos no país.
“Todo mundo paga impostos para pertencer ao ‘obschak’: batedores de carteira, ladrões de bolsa, ladrões de carros, traficantes de drogas, ladrões de casas e revendedores de mercadorias roubadas. Uma contribuição para o fundo é chamada de ‘ação’. Os criminosos que trabalham regularmente na região são obrigados a pagar de 5 a 10 por cento dos lucros, dependendo do valor dos bens roubados. ‘Turistas’, ladrões de carros e brigadas de gangues de ladrões de carros podem ser tributados com 15 a 20 por cento pelo direito de trabalhar em sua região natal e perturbar a paz", de acordo com um canal popular no YouTube dedicado a explicar o submundo do crime russo.
Embora o “obschak livre” possa existir como uma estrutura financiadora legalizada, acredita-se que os chefes do crime preferem dinheiro vivo, já que ele é mais difícil para as autoridades rastrearem e apreenderem.
“Um caixa desse tipo é guardado não por uma ou duas pessoas. Segundo algumas fontes, o número de pessoas que cuidam desse obchak às vezes chega a 20, selecionados em reuniões de grupo. A proteção da caixa é uma atividade de honra e lucrativa. A missão é confiada aos fanáticos, o tipo de ladrão que tem a mais profunda lealdade aos princípios criminosos”, afirma o mesmo canal do YouTube.
Dizem que quem usurpa ilegalmente o “obschak” é condenado à morte, na maioria dos casos.
Embora não se saiba com certeza o destino do dinheiro do “obschak livre”, acredita-se que o fundo seja usado para patrocinar futuras atividades criminosas, apoiar as famílias de chefes da máfia mortos, subornar autoridades estatais e manter o submundo do crime funcionando, em geral.
Apesar das causas "nobres", no entanto, há quem acredite que o “obschak” seja só uma forma de enriquecer ainda mais quem está no topo da hierarquia do crime. Assim, as doações para o “obschak” seriam vistas como um gesto de comprometimento e lealdade aos chefes do submundo do crime, aderência às normas sociais do estilo de vida dos ladrões e um investimento de longo prazo daqueles ambiciosos que aspiram a chegar ao topo da hierarquia criminal.
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