“Você vai pegar um resfriado assim!”, “Feche a jaqueta!” “Coloque meias mais longas”, “Ponha o capuz!”, “Onde está o seu cachecol?” são coisas que eu escuto o tempo todo. Mas eu não tenho mais dez anos, e essas frases também não são formuladas por minha mãe, mas por meus amigos, meu porteiro e, às vezes, até por estranhos. O que estas pessoas têm em comum? São todos russos.
Essas recomendações de roupas, que seriam justificadas se expressas durante uma expedição de inverno na Iakútia – região da Sibéria onde as temperaturas ficam regularmente próximas a -60°C –, são, na realidade, comuns muito além da estação gelada e em latitudes termicamente muito mais amenas.
Na verdade, não é incomum perceber, assim que chega o outono ou mesmo no meio da primavera, como o segurança do meu prédio em Moscou olha com reprovação para os meus tornozelos nus; e ele não hesita em me repreender, sempre em tom de brincadeira. Meu objetivo não é me juntar às fileiras dos locais que se banham na água gelada e andam de camiseta pelos montes de neve, mas simplesmente me vestir como quiser.
Claro que cometi alguns erros neste aspecto, como a vez em que, na região ártica de Murmansk, escalei uma montanha de jeans e sapatos urbanos com uma amiga, também francesa e vestida tão errado quanto eu. Ainda me lembro da risada que dei ao vê-la tremer freneticamente, incomodada pelas violentas rajadas de neve gelada no topo das pistas de esqui. Em outra ocasião, na Sibéria, depois de ter passado um dia inteiro andando em torno de -30°C de temperatura e sem nenhuma proteção no rosto, minha pálpebra superior acabou congelando, o que até exigiu uma operação cirúrgica mais tarde.
No entanto, tirando esses casos extremos, foram raras as vezes que tive um resfriado e nunca adoeci de fato por ter saído vestido da maneira que considerei adequada. Por que, então, os russos insistem em me persuadir a me cobrir mais? É por um sentimento de benevolência para com um estrangeiro que eles consideram inapto a seu clima severo, ou é um sinal de sua própria sensibilidade aguda ao frio?
Com o tempo, minha visão passou a se inclinar para a última hipótese.
Calor, calor e mais calor
No início de outubro, que é comumente conhecido como ‘verão indiano’ na Rússia ou ‘pequeno verão’ em várias partes do hemisfério Norte, quando as temperaturas de dia ainda estavam acima de 10°C, tornando mais fácil andar por aí com roupas de outono em uma decoração de folhagem dourada e roxa, parecia que muitos moscovitas já haviam tirado do armário seus casacos, gorros de lã e botas de inverno.
Esta é a época em que se presencia outra manifestação do amor radical dos russos pelo calor: ligar o aquecimento central dentro dos edifícios. Isso não seria problema se todos pudessem ajustar o termostato em casa como quisessem. Mas, na maioria das vezes, não é o caso. Na Rússia, na maioria dos prédios, o aquecimento central é predominante.
E, assim como em transportes públicos, lojas e outros locais públicos, a temperatura definida é muitas vezes insuportável. No quarto que eu alugava até recentemente, durante o inverno, eu não só queimava constantemente os pés ao tocar nos canos de ferro do aquecedor enquanto dormia, mas era obrigado a abrir e fechar a janela a cada cinco minutos – pois era como se eu estivesse sendo imolado no inferno se a deixasse fechada por muito tempo e como se estivesse sendo atacado por uma nevasca ártica caso ficasse aberta.
Essa situação me leva a uma teoria: não seriam os russos supertolerantes ao calor? Vários fatos dão sustentação a essa ideia: a capacidade deles de beber chá recém-derramado da chaleira, enquanto meus lábios parecem queimar instantaneamente com o contato; ou a capacidade de sobreviver naquela bania soviética e claramente disfuncional nos subúrbios de Moscou – quando estive lá com meu colega de apartamento cazaque, não tive outra escolha a não ser manter meus olhos fechados e respirar em pequenos suspiros, para que meus pulmões e meus globos oculares não fossem incinerados, afinal, o ar era incomum e excessivamente mais seco e quente do que em outros lugares desse tipo que já visitei.
As origens do medo
Então, uma última questão se coloca: essa quase criofobia (medo do frio) dos russos é fruto de uma sabedoria, desenvolvida ao longo dos séculos pela experiência do perigo representado por esse clima inóspito, ou são resquícios de um medo ancestral, cujas raízes remontam a uma época em que as casas, os medicamentos e a infraestrutura não eram tão eficazes como são hoje, mas que já não se aplicam? Na minha opinião, essa questão insolúvel é comparável à do ovo e da galinha. O que veio primeiro, cautela ou medo do frio?
Em todo caso, é preciso dizer que, desde o início dos tempos, as temperaturas negativas são motivo de medo para os povos da Rússia. Entre os iacutos, por exemplo, a divindade suprema benfeitora, Yuryung Aynyy Toyon, reside no nono céu, a mais magnífica das terras, onde não existe inverno. Além disso, o inferno, que no Ocidente é representado por fogo escaldante, é imaginado por vários grupos étnicos do Ártico e da Sibéria como um reino de gelo eterno. Na mitologia dos eslavos pagãos, que permanece amplamente desconhecida, o mestre do frio Tchernobog (literalmente, Deus Negro) é uma encarnação do mal absoluto, um portador de desastres e inimigo declarado de Belobog (Deus Branco).
Povos árticos, 1992-1993
Aleksandr Schemlyaev/Global Look PressNo entanto, por não estar pessoalmente imerso neste banho cultural que faz da geada o inimigo mortal desde o nascimento e não estando ainda suficientemente russificado para sentir qualquer prazer em suar sob sete camadas de roupas, permitam-me, caro segurança, queridos amigos e queridos estranhos, continuar, por minha própria conta e risco, a desabotoar meu casaco no inverno.
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