Quais padres russos podem se casar?

Estilo de vida
ALEKSANDRA GÚZEVA
Os padres ortodoxos russos casados não usam aliança... mas não é para fugir com as amantes! A hierarquia na Igreja Ortodoxa Russa é mais complexa do que julga nossa vã filosofia...

Na Igreja Ortodoxa Russa, diferentemente da Igreja Católica, os padres podem se casar — mas nem todos e eles também não devem usar aliança. Para ser padre nesse ramo do cristianismo, é preciso primeiro frequentar uma academia teológica russa e, após a graduação, há a opção de continuar a servir a Deus como “clero branco” ou “clero negro”. Os primeiros devem se casar e assumir o dever sacerdotal. Já os últimos, tornam-se monges.

"Quando é preciso tomar a decisão? Aqui não há coação", diz o reitor da Academia Teológica de Moscou, Bispo de Zvenigorod Feodorit. "Uma pessoa chega ao seminário já madura e com um programa de vida definido: estudar primeiro e depois servir a Deus em uma paróquia ou em um determinado mosteiro (digamos, onde ele já foi noviço). Outros ainda estão pensando. E outros ainda, infelizmente, mesmo no ano de formatura, ainda não sabem o que vão fazer depois", diz.

Qual é a diferença entre “clero branco” e “clero negro”?

Representantes do “clero negro”, ou seja, monges, ao receber a tonsura, fazem três votos: celibato, obediência e não cobiçar. Embora não possam se casar, eles têm a perspectiva de "subir na carreira" dentro da Igreja Ortodoxa. São justamente eles que mais tarde podem se tornar bispos, metropolitas e patriarcas - ou seja, subir ao topo da hierarquia da Igreja.

Tradicionalmente acredita-se que é o caminho do monge que pode levar à verdadeira retidão, às verdadeiras alturas da vida espiritual e talvez até mesmo à santidade.

Na história da Igreja Ortodoxa Russa, houve apenas um caso de um padre do “clero branco” canonizado como santo: a grande figura religiosa do século 19 Ioann Kronchtadtski, que teve uma grande influência na vida russa na virada do século.

Em nome da justiça, entretanto, deve-se dizer que, formalmente casado, Ioann Kronchtadski realmente escolheu o caminho monástico e cumpria todas as regras dele: vivia com a esposa como com uma irmã e não tinha relações carnais.

Já os representantes do “clero branco” devem se casar, e esta é uma longa tradição da Igreja Ortodoxa Russa. Eles se tornam párocos e devem ter tantos filhos quanto Deus quiser.

Em casos extremos, os padres podem se divorciar (oficialmente, a Igreja considera que o adultério é o único motivo do divórcio, mas cada caso é resolvido individualmente). Os padres divorciados, no entanto, perdem seu título, e um padre viúvo não pode se casar novamente.

Padres e esposas

A imagem tradicional do padre russo "bátiuchka" é a de um homem barbudo de batina, com muitos filhos e uma esposa, a "mátushka", de saia comprida e lenço na cabeça. A esposa pode ser "escolhida" para o candidato ao papel de padre e deve ser aprovada por pessoas em nível hierárquico superior.

Até hoje, os alunos do seminário que pretendem se casar passam por uma breve entrevista com o reitor - uma espécie de teste. Os jovens às vezes têm que esperar antes de receber aprovação – uma espécie de um teste dos sentimentos e da veracidade das intenções.

“É uma tradição muito antiga. Houve casos em que o reitor pediu a um casal que esperasse seis meses, e após seis meses eles se separaram”, conta um graduado da Academia Teológica de São Petersburgo.

O casamento de um padre não significa uma obrigação de felicidade pessoal, e em sua vida familiar ele deve, antes de tudo, servir a Deus. É por isso que ele não tem direito a anel de casamento, pois o padre é acima de tudo "noivo da Igreja" e não de sua esposa.

Mesmo que o homem já estivesse casado antes de se tornar padre, o anel de casamento é retirado de sua mão no dia da ordenação. Isso significa que ele, a partir de então, não pertence a si mesmo ou totalmente à família, pois a principal missão de um padre ortodoxo é servir a Deus e aos paroquianos.

A esposa do padre é tradicionalmente uma pessoa importante na Igreja, e ajuda muito na paróquia, faz trabalho de caridade, e pode ser a chefe do coro da igreja. Mas nem todas as mulheres são obrigadas a se dedicar à igreja - no mundo de hoje, as esposas de padres muitas vezes têm educação superior e são mulheres consideradas progressistas.

Alina Bábkina, por exemplo, esposa de um padre em uma igreja em Moscou, tem um canal muito popular no TikTok. Para seus 35.000 assinantes, ela desmistifica os estereótipos sobre padres e a vida religiosa e responde várias perguntas - mesmo as mais francas – como, por exemplo, o que ela e o marido pensam sobre contracepção e planejamento familiar...

Alina surpreende seus seguidores andando sem um lenço na cabeça - um detalhe aparentemente essencial da imagem tradicional de uma esposa de padre russo. Ela revela que muito mais que uma imagem é apoiar a família com amor - e até mesmo compartilhar responsabilidades.

"Quando duas pessoas se conhecem, elas conhecem seus pontos fortes e fracos", disse Alina à “Rádio Vera”. "E posso ter certeza de que meu marido, mesmo que eu esteja doente ou me sentindo mal, levantará cedo, fará mingau para o bebê, cortará uma maçã nele e todos estarão alimentados", diz.

Já Anna Kuznetsova, que tem sete filhos, dedica-se à política. Durante vários anos ela foi ombudsman dos direitos da criança para o presidente da Federação da Rússia e hoje é membra da Duma. 

Padres e monges modernos

O caminho “clássico” da Igreja é o seguinte: seminário, escolha e servir em uma igreja ou mosteiro. Mas, depois dos 70 anos de ateísmo na URSS e o retorno da Igreja à vida pública apenas no início dos anos 1990, houve mudanças no caminho tradicional do sacerdócio.

Naquela época, os padres, assim como os monges, não eram mais homens jovens, seguindo um chamado do coração, mas, muitas vezes adultos - engenheiros, professores, químicos. Cada um podia ter a própria história, incluindo a familiar. Mas uma pessoa com família e filhos pequenos ou dependentes certamente não poderia se tornar um monge. Ele devia ser livre de tais obrigações.

Entre os "líderes" espirituais ortodoxos russos modernos, muitos têm uma biografia interessante. Por exemplo, o famoso pregador padre Aleksandr Men tornou-se padre após ser expulso de uma instituição de ensino superior, quando era casado e fez um curso na Academia Teológica por conta própria.

Já o metropolita Tikhon Chevkunov, por exemplo, que dizem ser o confessor de Vladímir Pútin, formou-se em uma faculdade de cinema na juventude e só depois se converteu à Ortodoxia, nos anos 1980.

Ele se tornou um noviço, foi ordenado monge nos anos 1990 e se tornou abade do mosteiro Srêtenski, em Moscou. Mas ele se formou no seminário só depois disso - na verdade, ele foi nomeado reitor do seminário primeiro! Hoje, ele é uma figura conhecida da Igreja, presidente do Conselho Patriarcal de Cultura e autor de livros populares (como, por exemplo, sua coleção de contos “Santidades Profanas”, que foi traduzida para vários idiomas).

 

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