Quando o escritor e poeta infantil Nikolai Mazniak, 99, soube da quarentena decretada devido à disseminação do vírus COVID-19, o que o preocupou foi o cancelamento da parada do Dia da Vitória, que todo 9 de maio lembra a capitulação da Alemanha nazista. Nesse dia, as ruas são tomadas pelas fotos daqueles que estiveram envolvidos na Grande Guerra Patriótica (1941-1945), como na Rússia se denomina o período em que o país lutou contra a Alemanha e os países do Eixo.
A participação em um conflito dessas proporções altera o curso de um país em todas as esferas. Surgiu uma cultura de guerra que se refletiu, como não poderia ser diferente, também na literatura infantil. A despeito dos conflitos ideológicos que não cessaram, muitos autores infanto-juvenis oriundos de escolas variadas, experientes e novatos, escreveram poemas, contos, novelas, canções e peças sobre temas de guerra, como Aleksandr Fadéiev, Aleksandr Vvediénski, Elena Iliná, Kornêi Tchukóvski, L. Panteléiev, Lev Kassil, Liubóv Voronkova, Margarita Aliguér, Serguêi Mikhalkóv, Valentin Katáiev, Vera Inber.
Textos patrióticos passaram a estampar as páginas de revistas infantis soviéticas, como “O pioneiro”. Jovens mortos em combate tornaram-se heróis em dezenas de histórias, аssim como crianças na retaguarda, expostas a um amadurecimento precoce depois de pais e irmãos mais velhos serem convocados.
Vários escritores viraram correspondentes de guerra, como Samuil Marchak е Arkádi Gaidar – o último, que gozava de enorme popularidade entre os jovens soviéticos nos anos 1940 pelo livro “Timur e sua tropa”, morreu durante o confronto.
Uma garotinha e sua boneca
Hoje, prestes a completar cem anos, Nikolai Mazniak tornou-se também uma espécie de correspondente de guerra. Professor de língua e literatura russa na escola secundária, não por acaso escreveu principalmente para crianças.
Ele nasceu em 1920, em uma aldeiazinha próxima à cidade de Vladivostok, e, aos 22 anos, em outubro de 1942, foi convocado para o Exército Vermelho. Como operador de fuzil antitanque, participou das batalhas da operação defensiva de Donbass. Entre 1944 e 1945, nos efetivos da 78ª divisão de fuzileiros da Ordem de Suvórov, transpôs, lutando, um território que ia do rio Dniepre até o Elba.
Seis meses antes do fim da guerra, foi convidado a colaborar com o “Boeváia Krasnoarméiskaia” (em português, “O Exército Vermelho em Combate”) pelo editor do jornal. “Assim como precisamos de cartuchos para o fuzil, precisamos agora de poemas, meu jovem amigo”, dizia o editor a Mazniak. Além do hino de sua divisão, Mazniak publicou no jornal poemas, artigos, notas e relatórios.
Em 9 de maio de 1945, o escritor estava em Praga, cidade que ajudou a libertar. Mazniak, então com 25 anos, relatou naquele mesmo dia suas impressões, publicadas em 2005 na revista “Murzilka”,uma das mais lidas pelas crianças desde os tempos soviéticos:
“Em 9 de maio de 1945, com a conquista da vitória e da paz, entramos em uma das mais bonitas capitais da Europa: a Praga Dourada. Não à toa, os tchecos a chamam afetuosamente ‘Zlatá Praha’. Praga é uma cidade de palácios e catedrais, estátuas e baixos-relevos, magníficos jardins e parques; uma cidade de mitos e lendas. Iluminada pelo sol e pelos sorrisos animados dos cidadãos, Zlatá Praha alegrou-se com a nossa presença.
Moradores de Praga de todas as idades saudavam-nos das janelas abertas de par em par, cumprimentavam-nos e nos abraçavam nas ruas (...)
Eles nos davam buquês e pilhas de lilases perfumados. Havia lilases em cima dos tanques, nas carretas dos canhões, nas capotas dos automóveis...
As colunas se detiveram. Aproximaram-se de nós duas mulheres com uma menina que empurrava sua ‘filhinha’, uma boneca de olhos azuis em um carrinho lilás. A pedido do major da guarda, a mulher mais velha deixou-o pegar a pequena Jаna no colo. A menina concordouеаlegrou-se, confiante. Ela parecia ter encontrado o próprio pai vindo dos sufocantes campos de batalha. Essa confiança pueril nos tocou fundo.
Eu olhei para o rosto alegre do major, que com as mãos ressecadas segurava a menina, e um sentimento novoe tão claro iluminou minha alma de soldado.”
Em 9 de maio de 1954, Mazniak escreveu o poema “A menina e o soldado” (publicado ao lado de seu relato de guerra) que assim começa:
A Menina e o Soldado
Jana, eis a linda peça:
Sou o príncipe-soldado -
Uma estrela na cabeça,
E um fuzil ao lado.
Cheguei a ti de pauis,
Dos teus sonhos, porventura.
Princesa de olhos azuis,
Minha fada – formosura.
Viajas em tua caleche
A boneca – tua filha.
Sonhei num desfeche
Nesta maravilha.
O corvo da morte desumana
Pairava nas terras distantes.
Por ti combateram, Jana
Na guerra militantes.
O dia de maio cintilava
Detrás do fogo e da desgraça -
Inimigos abalaram, eslava,
Terminando a sua pirraça.
Saúdo em honra à Vitória,
A ti e à Praga Dourada.
Culminando esta história
Presenteio a paz aguardada.
Trouxe-a da floresta,
Apressando o passo.
Cuida dela, princesa,
Cuida sem fracasso!
9 de maio de 1945, Praga
Maria Mazniak é professora de português da Universidade Estatal de São Petersburgo (SPbGU).