“Nrávstvennost” é uma palavra russa que significa algo entre ética e moral. Ela é a ruína da existência russa há séculos: é a obrigação de fazer uma coisa enquanto o corpo e sua a alma estão te levam para a direção oposta. Na Rússia, porém, é quase nosso modus operandi.
Lembro-me de um amigo me olhando de um jeito estranho quando perguntei se ele tinha gostado de fazer sexo com uma moça que todo mundo da nossa roda desejava: ele teve a capacidade de dizer que preferiria que ela não o chupasse.
Quando saí do choque, queria dar um soco nele: “Espera, você disse que não a queria ela te chupando? Pelo menos você chupou ela?”. Eu já estava sem ar com as respostas: o cara estava no auge da vida, era bonito, tinha um emprego excelente (era advogado) e odiava dar e receber sexo oral.
Outra colega me surpreendeu com a história de um gerente de TI com quem ela saiu. O cara era bonito, tinha um metro e oitenta de altura, adorava charutos e era cheio de testosterona. Só que ele tinha vergonha de beijar, era péssimo nas preliminares e ficava exibindo suas conquistas depois de suas performances medíocres.
Isso tudo faz parecerem muito verossímeis os inúmeros artigos que li em sites feministas sobre as mulheres russas (ou às vezes estrangeiras também) que reclamam do sexo com os homens russos. Posso resumir as razões delas: os russos, apesar de serem românticos, terem uma masculinidade atraente e serem cheios de testosterona simplesmente não conseguem se comunicar sexualmente quando é preciso, e o sexo com eles é, geralmente, estranho.
O mito de que “os russos são uma porcaria na cama”, apesar de estar caindo por terra, ainda sobrevive. E há muitas razões e fatores sociais que contribuem para isso.
‘Decência’ de Deus
Há cerca de um ano, membros de um coletivo russo chamado “Sexprosvet” (Questão do Sexo) entraram com um pedido para para realizar uma palestra pública no Parque Muzeon, em Moscou. Mas o pedido foi negado.
O grupo é composto por jovens psicólogos e sociólogos buscar jogar luz sobre o assunto do bem-estar sexual. Mas as autoridades não permitiriam uma saída do obscurantismo sexual: sexo, como manda a regra russa, é um assunto que não é feito para a família. É algo perverso que deve ser deixado para resolver por casais em seus devidos quartos.
Mas onde cada uma das pessoas que compõem um casal experimentam a vida? O governo russo incentiva a procriação sempre que pode, então por que não quer liberar o povo para fazer amor melhor?
Sinceramente, não sei! A única vez em que os russos modernos puderam pensar oficialmente sobre educação sexual foi em meados dos anos 1990, durante o governo de Iéltsin - um breve período de americanização na história do país. Antes disso, só na década de 1920, quando Vladímir Lênin – que, aliás, diz-se, não curtia sexo - tentou incentivar a geral a transar por prazer.
A educação sexual dos anos 1990, proposta pela diretora do Instituto de Fisiologia da Juventude, Marina Bezrukikh, enfrentou imediatamente a oposição da Igreja e de diversos meios de comunicação. Assim, este processo político estava fadado ao fracasso desde o início. Cinco “programas alternativos” distintos foram introduzidos nas escolas. Mas, em 1997, diversos ataques na imprensa e um terrorismo da Igreja Ortodoxa sobre o assunto colocaram um ponto final à ideia.
A Igreja Ortodoxa é um instrumento poderoso neste país (que, aliás, é “secular”!). Um documento de 1997 emitido pelo Conselho dos Bispos afirmou que o “nrávstvennost” da Rússia acabaria se as crianças aprendessem sobre sua sexualidade. Isso “corroeria sua personalidade”, afirmava então o documento.
No final de 2007, em meio a uma explosão nos casos de HIV na Rússia, a Igreja, depois de garantir para si uma doação da ONU, empenhou-se em disseminar a ideia de que a solução só poderia ser encontrada na fidelidade ao marido ou à esposa até a morte e abstinência de relações sexuais antes do casamento.
Em 2013, o ombudsman dos Direitos da Criança na Rússia, Pável Astakhov, disse ainda que a educação sexual “nunca” fará parte do currículo escolar russo enquanto ele puder impedir isto.
Assim, muitos russos hoje têm medo de parecer “pervertidos”, por um lado, ou “puritanos”, por outro. Até nossos blogueiros sexuais são considerados “provocativos” e “desafiadores das convenções”: o entendimento de que o orgasmo é algo saudável ainda precisa ser incorporado à nação cristã amante da privacidade que compomos. E esse tipo de terminologia generalizada é prova disso: aqui, sexo é “excêntrico”, e não “saudável”.
Na verdade, porém, a atividade sexual na Rússia está entre as mais altas do mundo. De acordo com o fabricante britânico de preservativos International Group, ocupamos segundo lugar mundial, atrás apenas dos Estados Unidos.
Ademais, segundo um outro estudo, citado pelo site factsanddetails.com, adolescentes russos de 16 anos de idade têm, hoje, o dobro de parceiros sexuais que seus pais tiveram com a mesma idade. Quando o assunto são as moças nesta faixa etária, a diferença é cinco vezes maior!
Em 1991, o Centro de Pesquisas de Opinião Pública da Pan-Rússia (VTsIOM) realizou uma pesquisa sobre a postura dos russos em relação ao esclarecimento de questões sexuais para jovens e 60% dos entrevistados se mostrarm a favor. Em 1997, este número subiu para 80% entre professores e cerca de 90% entre alunos da 7ª à 9ª série, assim como seus pais.
Tudo isso anda de mãos dadas com a epidemia de pornografia em nosso país, juntamente com a recusa do governo em regulamentá-la. Quase todas nossas estrelas pornôs acabam partindo voluntariamente para o exterior, já que o governo russo reconhece apenas o tipo ilegal de produção pornô.
O que quer que pornografia “legal” signifique, ela não aparece no código criminal russo - é uma área eternamente obscura (apesar de a pornografia em si ser legalizada!). No entanto, isso não ajuda em nada a reduzir a mercantilização da sexualidade feminina em filmes, anúncios de TV e todo tipo de entretenimento.
A Rússia está mergulhada em imagens insinuantes de sexo que são injetadas em nossos cérebros cristãos desde a infância. Aqui, tudo é dinheiro, e não importa o quanto o governo e a Igreja sejam contrários à ideia dr uma liberação sexual. Afinal, sexo vende. Essa negação teatral é o que mantém nossos relacionamentos românticos estagnados e em estados de controle arcaicos.
Ignorar o sexo mata o romance
Sexo de qualidade é o combustível que alimenta um relacionamento duradouro. E os russos adoram a ideia do amor romântico. Mas, agora que a União Soviética caiu e as mulheres passaram a sustentar a casa, ainda há grandes diferenças quanto ao Ocidente: aqui, romance não existe sem propriedade.
Nosso vício em pornografia e a mercantilização do sexo batem de frente com ódio por sexo como expressão de intimidade. Durante o período de liberação sexual no governo de Lênin, o breve sopro de liberdade foi moldado pelas necessidades naturais do povo. Mas as feministas da era Lênin construindo o presente sobre um passado tsarista muito restritivo, que favorecia um despotismo patriarcal ilimitado, arbitrariedade e escravização de tudo o que estivesse relacionado à família pelo homem como um direito divino.
Hoje, 30 anos desde a queda da URSS, a Rússia ainda tenta apagar de seu ser o modelo romano autocrático de pater familias, em que a mulher era vista como um tipo de “coisa do diabo” - a “sedutora” necessária para duas coisas, prazer e reprodução.
Vivemos em uma terra onde o policiamento da decência, de si mesmo e dos outros, está intrinsecamente ligado à autoridade religiosa. Esse problema é ainda mais agravado pelo governo, que adota o “tradicional” como o princípio que liga as pessoas neste país gigantesco.
A excitação russa acontece ao mesmo tempo que múltiplas expressões vergonha. E, como somos jogados de um extremo ao outro, o sexo ou é considerado algo superficial demais, ou é idolatrado como precioso demais – tudo isto pelo mesmo indivíduo.
Com a masculinidade como princípio norteador de nossa cultura, o problema é evidente: os homens inflam suas intenções românticas com o intuito de satisfazer suas necessidades carnais. Isso, naturalmente, aumenta a desconfiança das mulheres e os relacionamentos românticos se transformam em joguetes cheios de traição.
Essas contradições em ebulição foram expressas por nosso amado escritor e dramaturgo Antôn Tchékhov em seu conto “Ariadne”: “Estamos insatisfeitos porque somos idealistas. Queremos que os seres que nos dão à luz e produzem nossos filhos sejam mais elevados que nós, estejam acima de qualquer coisa na Terra. Quando somos jovens, romantizamos e idolatramos aquelas por quem nos apaixonamos; amor e felicidade são sinônimos para nós. Para nós, na Rússia, o casamento sem amor é desprezado, a sensualidade é ridicularizada e induz repulsa, e os romances e histórias em que as mulheres são bonitas, poéticas e elevadas fazem o maior sucesso”, escreveu Tchékhov.
“O problema é o seguinte: dificilmente nos casamos ou nos damos bem com uma mulher sem que, mais tempo, menos tempo, fiquemos desapontados, decepcionados; experimentamos outras mulheres e novamente encontramos desilusão, novamente horror e, finalmente, nos convencemos de que as mulheres são mentirosas, mesquinhas, vaidosas, injustas, sem educação, cruéis. Resumindo, elas não só não estão acima de nós, como são incomensuravelmente mais baixas que nós, homens.”
Na ausência de apoio oficial ao sexo como uma ferramenta de comunicação terapêutica saudável entre dois iguais, muitos russos da velha guarda parecem não conseguir retirar as mulheres do pedestal em que elas foram colocadas. Se uma mulher cometer o mínimo desvio ou não se encaixar nessa imagem clássica, ela é imediatamente taxada de prostituta.
Contra dogmatismo religioso: o que dizem os especialistas
Ninguém está a salvo da globalização. Mas, no caso dos russos, isso é uma coisa boa. Os dinossauros estão em declínio, juntamente com suas noções da velha guarda de servidão e família como cumprimento de algum dever religioso.
De acordo com o sociólogo Iliá Markin, surge uma nova consciência cívica. Coisas tão simples como a internet estão gerando mudanças em todas as áreas da vida: desde a resistir à corrupção policial a como tratamos outras pessoas.
“Jovens russos instruídos, especialmente habitantes das grandes cidades, estão optando por parcerias românticas como um modo de coabitação", ele disse ao Russia Beyond. O mundo está mudando, e até “os bastiões da castidade na região do Cáucaso [muçulmano] estão em declínio. Tudo caminha para o pós-modernismo total”, afirma.
“Os costumes de outrora não podem sobreviver à competição de Hollywood e de instituições culturais europeias. Já chegamos a um ponto em que não há retorno... Ninguém quer voltar aos arcaísmos”, diz Markin.
E se o governo russo for subitamente substituído por outro, ultraliberal, e a Igreja Ortodoxa perder o controle sobre a nação?
“Se as regras mais rígidas se desfizerem, aí, sim, é que a civilização, ao invés de desmoronar, começará. Foi assim desde tempos imemoriais: o Degelo, na década de 1960, a Perestóika, na década de 1980... Em cada um desses eventos, assim que as regras antigas afrouxaram um pouco, seguiu-se imediatamente uma explosão cultural – e, sim, com alguns pontos negativos. Mas, com o tempo, tudo atinge um equilíbrio. E assim será quando isto acontecer novamente, possivelmente”, diz Markin.
A avaliação mais otimista oferecida por Markin está no cisma que começamos a ver entre Igreja e governo, de um lado, e uma sociedade civil que emerge rapidamente do outro. “A democracia vem de baixo, das bases. A Igreja tenta ao máximo impedir esse processo”, diz.