O único espaço de coworking exclusivamente feminino da Rússia não tem nada de clube da Luluzinha ou casa escondida na árvore. Mas não é fácil encontrá-lo. Em um típico pátio interno de edifício em São Petersburgo, atrás de uma porta preta que não tem nada fora do comum, sem qualquer indicação de sua existência, fica escondida uma sala extraordinária, cheia de pufes e mesas coloridas.
Quando a noite cai, este lugar misterioso é o “Costela de Eva”, um local que recebe palestras, exposições e outros eventos temáticos (dos quais, aliás, Adão e seus congêneres podem participar).
Mas, à tarde, a sala se transforma no centro de coworking feminino “Simone” - em homenagem a Simone de Beauvoir, cujo livro “O segundo sexo” é considerado um marco na história do feminismo. Então, os homens podem esmurrar a porta o quanto quiserem, mas não entrarão.
A curiosidade masculina é tanta, que um usuário do Twitter chamado “Mixammo” escreveu ao promotor local para reclamar que a política de discriminação por gênero da casa era contra a lei russa.
A ação foi seguida por uma tentativa frustrada do deputado da Duma (câmara dos deputados) Vitáli Milonov de entrar com uma equipe de filmagem da estação de TV “360”.
Mas a experiência mais inventiva foi certamente foi a de um jornalista do site Fontanka, que fingiu ser transexual para entrar no recinto.
Na Rússia, como em muitos outros países, há diversos lugares que reforçam a separação por gêneros e são aceitas desta maneira: casas de banho femininas e masculinas, barbearias masculinas e clubes de charutos particulares, ginásios femininos e até compartimentos de trem separados.
Mas por algum motivo, o espaço de coworking é diferente e, por isto, mais controverso. O curioso público de Petersburgo morre de vontade de saber o que as mulheres realmente fazem no “Simone” das 11h às 19h.
Folga da opressão
Acima de tudo, as mulheres que ali se reúnem buscam escapar da opressão masculina, diz Svetlana Narkhatova. Ela é, não oficialmente, a “curadora” do “Simone”. Ali, até os cafés têm nomes no feminino: o cappuccino virou “cappuccinessa”, e o latte é a “latessa”, só para mencionar alguns.
“No início, pensamos em batizar as bebidas em homenagem a feministas famosas. Mas depois percebemos que o feminino das palavras é um assunto importante a ser discutido”, explica Svetlana.
É curioso saber como esse descanso da opressão funciona na prática. No momento da visita da reportagem, há poucos visitantes: uma mulher está esticada em um pufe no meio da sala; outra está imprimindo algo usando um computador próximo à janela.
Uma espécie de estante traz suvenires feministas: braceletes com as palavras “Amar-se é a maior revolução”, bolsas de maquiagem com a inscrição “Todas as pessoas são irmãs” e meias onde se lê “Carimbe seu sexismo”.
O “Simone”, assim como o “Costela de Eva”, é um projeto baseado sobretudo em doações (o valor recomendado por dia é de apenas 150 rublos, ou seja, seis reais, o mesmo de uma bebida do cardápio), e a venda de suvenires faz parte da arrecadação.
Todos os itens são manufaturados por ativistas país afora em apoio ao projeto – e, ao que parece, alguns homens colaboram como podem. "Lembro que um cara nos deu um aspirador e uma mesa, e quando perguntamos o motivo da doação, ele disse que devia haver mais espaços de coworking femininos", lembra Svetlana.
“Claro que nos dizem o tempo todo que nosso projeto é discriminação de gênero. Mas ele é apenas um lugar seguro para as mulheres poderem dar um tempo, pelo menos por um período, da constante opressão e da necessidade de provar que elas também existem neste mundo e não são meramente um enfeite ou empregadas de algum homem”, diz Svetlana.
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Ela afirma que se sentiu discriminada no emprego anterior ao saber que seus colegas homens ganhavam mais. E seu ex-marido estava entre eles.
“Eu era casada havia seis anos e não trabalhava no começo. Então, encontrei um emprego e perguntei se podíamos dividir as tarefas domésticas, mas meu marido disse que não, porque achava que meu trabalho não contava. Foi muito desanimador”, diz.
As mulheres ali falam abertamente sobre os comentários terríveis sobre si nas redes sociais, mas esperam que tais atitudes mudem.
Estudos de caso da clientela
Mulheres de todas as idades visitam o “Simone”. O único requisito é saber usar a internet, porque, além do boca-a-boca, esta é a única maneira de descobrir sobre este lugar secreto.
Uma senhora de aparência séria sentada ao computador ali é uma pesquisador de museus que precisava de um lugar onde trabalhar em paz. Seu nome é Natália, e ela foi parar ali para ficar um pouco livre do marido, que a distrai do trabalho quando está em casa.
“Estou aqui pela primeira vez, e acho que esse espaço de coworking é uma ótima ideia. Deveria haver mais lugares assim isso”, ela diz.
Quando perguntamos sobre a pressão masculina, Natália diz que, antes de ler sobre o assunto, não percebia, mas, agora, mais inteirada, entende que também passou muito por isso. É, basicamente, o que o sociólogo Pierre Bourdieu classificaria como violência simbólica: o dominado passa a aderir à ordem social, já que só dispõe, para elaborar seu pensamento, de instrumentos elaborados e compartilhados pelos dominantes – em outras palavras, os dominados pensam e agem de acordo com as categorias mentais herdadas dos dominantes, percebendo-as como naturais, neutras, e perpetuando-as.
Enquanto converso com Natália, a Lilia, vestindo jeans e deitada no pufe, acorda. Ela está estudando medicina, especializando-se no tratamento da Aids, e diz que se sente segura ali, já que pode estar com a namorada sem ter que esconder sua orientação.
“Meu ex-namorado estava longe de ser feminista. No começo, só quem estava interessado no feminismo sabia sobre esse lugar, mas agora até meus colegas de curso estão falando sobre ele”, diz.
Lilia diz que geralmente é incomodada pelas atitudes masculinas em lugares públicos e que fica imediatamente estressada quando está rodeada de desconhecidos.
"Acho que qualquer mulher deve se considerar uma feminista, mas o termo é mal visto, algo totalmente injustificado", completa.
No meio tempo, Iúlia, uma jovem brincalhona de suéter branco, vai buscar uma “latessa”. Ela é química na Universidade Estatal de São Petersburgo e no tempo livre ajuda no projeto em eventos diversos.
"Venho de uma família 'europeizada' e não tenho uma educação sexista. Ninguém me disse jamais: ‘Você é menina, não pode fazer isso e aquilo", conta Iúlia.
Ela admite que a sociedade russa pode ser difícil às vezes, porque muitas pessoas têm opiniões atrasadas - até mesmo seus colegas cientistas. "Muitos pensam que as feministas são simplesmente lésbicas ou mulheres pouco atraentes que não conseguem achar homem para casar, mas isso não tem nada a ver", diz.
Outra moça se aproxima brevemente. Daria é professora de russo para refugiados e editora do livro “Contos de fadas para meninas”, onde as histórias, segundo ela mesma, são “livres da objetificação e dos estereótipos”.
“Eu pensava que as feministas eram apenas mulheres loucas insistindo sobre direitos e que não precisávamos disso. Mas, na verdade, quando uma mulher vira feminista, ela simplesmente decide olhar criticamente para sua vida e ser menos humilhada. Por isso, é natural que estas mulheres tendam a estar em relacionamentos abertos, ou cercadas em casa por gatos, como alguns imaginam. Mas isto não diz nada sobre ela como indivíduo. Até que ponto é possível julgar uma mulher com base na existência ou não de um marido?”, diz.
Daria, porém, tem um parceiro: um filósofo que antes dela mesma já era feminista. Apesar de ser homem. E que respeita a necessidade feminina de espaços como o “Simone”.