Troca de nome de forte faz Havaí declarar guerra à sua herança russa

Getty Images, Pixabay, fortelizabeth.org
À medida que o sentimento nacionalista havaiano aumenta, depois de mais de um século de conquistas e ocupações americanas, o pequeno, porém importante, legado russo de 200 anos do arquipélago do Pacífico fica em fogo cruzado.

Lembre um norte-americano que sua “caixinha de gelo” chamada Alasca costumava ser russa e você irá provavelmente se deparar com descaso e fácil aceitação. Mas diga a eles que sua joia tropical do Pacífico, o Havaí, quase teceu uma aliança com os tsares, e a reação é muitas vezes de choque, descrença e até horror. Hoje, alguns deles não se importariam em apagar esse fato do registro histórico.

Após dois séculos de relações pacíficas entre a Rússia e o Havaí, a comunidade russa local foi surpreendida no final de 2018, com um movimento de revisionismo do legado histórico.

O problema começou em novembro passado, durante a Associação dos Clubes Cívicos do Havaí, que, em sua 59ª convenção anual, fez um apelo oficial ao Conselho de Terras e Recursos Naturais do Estado do Havaí pedindo para renomear o Parque Histórico Estatal da Fortaleza Russa Elizabeth para Pāʻulaʻula – o nome nativo tradicional dessa área.

“Os nomes dos lugares devem refletir nossa herança cultural e sua integridade histórica e geográfica”, escreveu a associação em seu apelo.

“Ao longo dos anos, lugares foram renomeados, e nossos nomes antigos caíram em desuso”, disse Nalani K. Brun, especialista em turismo do Gabinete de Desenvolvimento Econômico do Condado de Kauai, em um comunicado.

O Conselho da Comunidade Russa dos EUA (RCC), uma organização social sem fins lucrativos que une emigrantes russos, discorda da posição havaiana, e afirma que “renomear o forte apagará a história única e amplamente desconhecida” que conecta os povos havaiano e russo . Ainda segundo a ONG, a solução mais lógica e sem conflitos é adicionar o nome nativo ao histórico já existente, sem descartar nenhuma parte do título original. “O compromisso da comunidade russa será chamar o local por seus dois nome: Forte Russo Elizabeth/Pāʻulaʻula.”

“Nós nos opomos a remover a palavra “russo” do nome, porque não ficará claro de qual Elizabeth se trata. A maioria das pessoas provavelmente fará associações com a rainha da Inglaterra, e não com a imperatriz russa ”, diz Elena Branson, diretora do RCC. “Esperamos que a comunidade havaiana tenha um gesto amigável e deixe o nome. Isso seria no espírito de diversidade, multiculturalismo e amizade.” 

Um forte, não – três

Com suas muralhas em ruínas, que hoje têm mais de dez metros de altura (mas originalmente tinham 20 pés de altura), o forte é o último lembrete visível da histórica presença russa no arquipélago. Ainda assim, os nacionalistas havaianos não estão interessados ​​em fazer concessões.

“A decisão de nomear, ou renomear essa área, é do povo de Kauai, assim como a decisão sobre qual nome deve ser primário e mais proeminente”, escreveu a ex-promotora Mauna Kea Trask, em um e-mail enviado ao Congresso dos Americanos Russos, outra organização sem fins lucrativos de emigrantes russos.

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O Forte Russo Elizabeth foi fundado na ilha de Kauai em 1816 por exploradores a serviço da Companhia Russa-Americana (CRA) de São Petersburgo.

O forte acabou sendo abandonado anos depois, quando os russos foram expulsos da ilha por comerciantes americanos que inventaram uma histeria antiespionagem para garantir monopólio comercial com os mandachuvas locais.

Além do Elizabeth, os russos construíram dois outros fortes – o Aleksandr e o Barclay-de-Tolly – mas quase nada resta de ambos, exceto as pedras da fundação. Todos os três foram construídos como parte de uma aliança não oficial com o Chefe Supremo Kaumuali’i, o último governante independente da ilha. “Segundo uma pesquisa histórica recente”, diz Branson, “o Chefe Supremo precisava das fortalezas russas para defender seu reino de um rei havaiano rival nas outras ilhas. Os russos, porém, nunca se envolveram diretamente na disputa interna havaiana”.

Revisionismo à vista?

O reino havaiano foi destruído e conquistado na década de 1890 por corporações americanas com o apoio de mercenários e militares dos EUA. Em 1920, havia apenas cerca de 20.000 havaianos nativos, contra os 500.000 na década de 1780. A conscientização maior de hoje sobre esse extermínio alimenta o renascimento nacionalista local, bem como os apelos gerais por justiça histórica e social.

“Entendemos que o desejo havaiano de preservar e celebrar sua cultura e história, e devolver nomes nativos e históricos é uma parte importante desse processo”, diz Branson, acrescentando que “os russos nunca estiveram envolvidos em operações militares ou em qualquer um dos eventos dolorosos do passado; pelo contrário, a Rússia era aliada e ajudou os havaianos, por exemplo, construindo três fortes”.

As autoridades garantem que não há desejo de apagar a história russa ou ignorar o papel que os russos desempenharam no planejamento, projeto e construção inicial do forte. Um mapa norte-americano datado de 1885 menciona claramente o “Antigo Forte Russo”, e o local foi designado como Patrimônio Histórico Nacional pelo governo dos Estados Unidos em 1962.

“É desejo do [departamento de] Parques Estatais se engajar em um processo que reflita com precisão a história do local, respeite a cultura nativa havaiana e reconheça o papel da Companhia Russo-Americana”, disse Curt Cottrell, responsável pela administração de parques estatais do Havaí, em 28 de dezembro de 2018. 

O consenso ainda é possível

A polêmica não poderia vir à tona em um momento pior. Em 2017, a comunidade russa no Havaí realizou uma grande celebração comemorativa no Forte Elizabeth para marcar os 200 anos de relações entre a Rússia e o arquipélago.

Na ocasião, foram elaborados planos para transformar as ruínas do Forte Elizabeth em um centro cultural e de pesquisa para o estudo e preservação do patrimônio cultural e histórico russo-havaiano, e criou-se um site para popularizar a causa.

Para dar peso ao caso, a comunidade russa aponta para outros locais nos EUA, como a Colina Russa de São Francisco, que foi nomeada na década de 1850, quando colonos descobriram um pequeno cemitério russo no topo do morro. Embora o cemitério tenha sido removido, o antigo nome permanece até hoje, e ninguém sugere tirar a palavra “russo” e substituí-lo por um nome nativo norte-americano.

Natalie Sabelnik, diretora do Congresso de Americanos Russos, vê o Forte Elizabeth como um “símbolo de relações amistosas (…) entre a Rússia e os Estados Unidos. Não renomeie o Forte Elizabeth. Vamos continuar trabalhando juntos para restaurar, revitalizar e colocar o forte de volta ao mapa, para que todos possamos trabalhar juntos nesse projeto. Todos ganharemos se trabalharmos juntos”.

Quanto ao futuro, Cottrell enfatiza que qualquer decisão só poderá ser tomada pelo Conselho de Terras e Recursos Naturais do Havaí, mas isso não deve ocorrer em um futuro breve. Até lá, as autoridades estudarão a questão e esperam encontrar uma solução que restaure as relações amistosas entre as comunidades russa e havaiana.

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